Saúde

'O cenário é apocalíptico', diz diretor do Cremepe sobre crise na atenção básica à saúde

Nesta entrevista, o médico André Dubeux aponta os pontos negativos e positivos do SUS, além de criticar as falhas na atenção básica

Cinthya Leite
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Cinthya Leite
Publicado em 02/12/2018 às 9:47
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Nesta entrevista, o médico André Dubeux aponta os pontos negativos e positivos do SUS, além de criticar as falhas na atenção básica - FOTO: Bobby Fabisak/JC Imagem
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Médico urologista, André Dubeux é ex-presidente do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe) e, na atual gestão, ocupa cargo de secretário na diretoria. Nesta entrevista à repórter Cinthya Leite, ele fala sobre perspectivas profissionais dos recém-formados, aponta os pontos negativos e positivos do SUS, além de criticar as falhas na atenção básica, a falta da carreira de médico de Estado e as precárias condições de trabalho.

Confira:

JC – O que explica um maior interesse dos recém-formados em fazer residência médica, em comparação a qualquer outra atividade, logo após a conclusão da graduação?

ANDRÉ DUBEUX – Atualmente não há condições alguma de um médico graduado exercer a profissão em sua plenitude, apesar do diploma legal. A residência médica é praticamente mandatória. Outro ponto que merece destaque é que não existe (vaga) de residência médica para todos os egressos. Estamos formando aproximadamente 35 mil médicos por ano (no Brasil). A projeção é que, em 2050, existam cerca de 1,5 milhão de médicos. Vamos triplicar (em comparação ao universo atual, de 452.801 médicos). O cenário é apocalíptico na minha concepção. Aqui em Pernambuco, são 600 vagas por ano de residência médica. Este ano quase 2,5 mil pessoas fizeram provas. Ou seja, 1,9 mil ficaram fora. Obviamente que a assistência à população vai cair. Por outro lado, apenas 74% das vagas de residência médica em Medicina de Família e Comunidade são preenchidas. Isso acontece pelo desestímulo; não há carreira de médico de Estado, as condições de trabalho são muito ruins. Existe também um desvirtuamento da Saúde da Família, que está há bastante tempo precisando rever alguns conceitos. Por que eu digo isso? As duas patologias que mais demandam atualmente da Atenção Primária são diabetes e hipertensão. Se ambas não forem tratadas adequadamente vai estourar a Atenção Terciária (serviços de alta complexidade, como os hospitais). O Hospital da Restauração, o Getúlio Vargas e o Otávio de Freitas lotados de pacientes com AVC (acidente vascular cerebral) e infartados, com pé diabético...

JC – E estamos falando de doenças que podem ser prevenidas e controladas na Atenção Básica à Saúde.

ANDRÉ DUBEUX – A saúde básica deste País está muito ruim. E ainda tem a questão da segurança. Basta imaginar que, ao entrar em determinadas comunidades, é preciso fazer um acordo com o traficante, e isso não é só no Recife; é no Rio, em São Paulo, na Baixada Santista... A coisa não é tão simples como a gente pensa. Muitos dos médicos que se formaram recentemente (entre os dias 21 e 24 de novembro, o Cremepe fez a inscrição de 381 médicos) foram atraídos pelo salário de 11,8 mil reais (referência ao valor da bolsa-formação do Mais Médicos, cujo novo edital fez crescer o número de registros nos conselhos em todo o Brasil). A maioria diz para gente que vai passar dois anos (vinculado ao programa) e depois fazer residência médica. Ainda vem outro viés: as coisas ficam mais difíceis quanto maior for o tempo em que o médico fica sem fazer residência, que está pior do que vestibular.

JC – Como estão distribuídas as vagas?
ANDRÉ DUBEUX – No Brasil, as vagas de residência médica são fixas. Em outros países, como na Inglaterra, se não há necessidade de se ter mais anestesiologistas, e sim mais pediatras, abrem-se vagas na pediatra, por exemplo. Em Pernambuco, precisamos de mais médicos de saúde da família, neonatologistas, pediatras e obstetras. Essas especialidades, ao longo do tempo, foram perdendo atratividade remuneratória e condições de trabalho. Hoje os alunos se formam e querem radiologia, dermatologia, oftalmologia, medicina do tráfego. Não é disso que precisamos, e sim de uma forte Atenção Primária.

JC – Se pensarmos em Medicina de Família e Comunidade, falta algo para a especialidade ser mais atrativa a ponto de ser escolhida para a residência?
ANDRÉ DUBEUX – Os médicos que queiram se dedicar (a essa especialidade) precisam ter carreira de Estado e vínculo empregatício definitivo. Obviamente que isso não passa só pela condição remuneratória e de estabilidade, mas também por uma melhor equipe multidisciplinar para se trabalhar a (assistência) materno-infantil, que considero hoje um caso de polícia. O Estado brasileiro não cumpre o que diz o Ministério da Saúde, que recomenda pelo menos seis consultas no pré-natal. As mulheres não têm essas consultas. Na 12ª semana de gestação, por exemplo, é o momento de se passar pelo ultrassom morfológico (exame feito na gravidez que avalia o risco de alterações genéticas). E (muitas mulheres) não consegue fazer (o exame) no Sistema Único de Saúde (SUS). Outra coisa: voltamos a discutir sífilis neonatal (infecção transmitida para o bebê na gestação), que é uma doença bíblica. Quando analisamos por que os casos ocorrem, percebemos que é a falta de penicilina benzatina (usada para tratar a sífilis em gestantes). A empresa não queria mais fornecer (o medicamento) porque uma ampola de penicilina benzatina custa 3,50 reais. Então, respondo diretamente: não há procura pela residência em Medicina de Família e Comunidade porque não há segurança jurídica nem carreira de Estado. Entregamos uma carta, ao presidente eleito, das entidades médicas com essas propostas. Precisamos ver algo atrativo para o médico de saúde da família, que é um profissional fundamental no SUS.

JC – Esse é o contexto que faz a Medicina de Família e Comunidade a ser a 1ª opção de residência só para 1,5% dos egressos?

ANDRÉ DUBEUX – Sim. O médico sempre pensa em ter um status; é preciso admitir isso. Ele quer ter um carro do ano, um consultório e quer viajar. A saúde da família, nesse modelo atual, está longe disso, muito longe disso. Estamos com esperança na receptividade do médico indicado ao cargo de próximo ministro da Saúde, que conhece os anseios da categoria. Talvez... Não sei se ele vai conseguir, mas é uma esperança que a gente tem.

JC – Neste panorama em que a maioria dos recém-formados quer fazer residência médica, ter consultório, trabalhar em hospitais e clínicas e, por outro lado, uma minoria tem como preferência atuar em unidades básicas de saúde e em programas de saúde da família, como o senhor analisa, a longo prazo, o Mais Médicos, que é um programa pautado na Atenção Primária à Saúde?

ANDRÉ DUBEUX – Nunca fui contra o Mais Médicos. Não concordo, assim como as entidades médicas, com médicos que não tiveram o diploma revalidado. Mas não vamos entrar mais nesse mérito. O Mais Médicos, do ponto de vista de levar os colegas a lugares distantes foi válido. Pensar, no entanto, em resolver o problema da saúde pública com a presença de médico é querer pensar, com toda honestidade, que a gente é idiota. Isso é tão verdade que o Mais Médicos não resolveu o problema da saúde pública no Brasil. No Recife, que tinha médicos cubanos, a saúde pública é uma vergonha: falta material, e estava na pauta a questão remuneratória. Mas a pauta principal é a segurança. Para se fazer visita domiciliar, o médico precisava ter o aval do poder paralelo, que é o dos traficantes. O Mais Médicos é importante. Se não houver, contudo, mudanças de paradigma, de fluxo e de gestão, continuará sem resolutividade.

JC – Se a maioria (80%) dos recém-formados hoje quer logo fazer residência e apenas uma minoria (16%) deseja início imediato da prática médica, os médicos que colaram grau recentemente e ingressaram no Mais Médicos estão indo a um local que não é preferência deles?

ANDRÉ DUBEUX – Sim, eles estão indo pela atração financeira; não tenho duvidas disso. É o principal chamamento. Os recém-formados estão indo pela questão remuneratória, talvez até por uma questão da segurança jurídica e pela promessa do presidente eleito criar carreira de médico de Estado. Talvez seja isso. 

JC – Muitos recém-formados optariam pelo setor público se remuneração, condições de trabalho e número de horas fossem equivalentes aos do privado. Como o senhor analisa esse cenário?

ANDRÉ DUBEUX – Um exemplo: na Inglaterra, as coisas funcionam. Aqui, uma pessoa com retenção urinária passa 18 meses entre o tempo de levar exames (ao médico) e ter a data da cirurgia confirmada. É um sistema falido. Se eu tivesse condições (de trabalho no sistema público), não teria consultório particular. Começaria às 7h e terminaria às 16h como na Inglaterra, onde os médicos são bem remunerados e disciplinados. Eu tenho 28 anos de formado e dois vínculos com o Estado: um quando me formei e outro há 25 anos. Ganho, com ambos os vínculos, 10 mil reais. Isso (remuneração e condições de trabalho) tem que ser discutido.

JC – E o senhor, doutor, acredita no SUS?

ANDRÉ DUBEUX – É uma pergunta capciosa. O SUS foi o maior modelo de inclusão social do País. Mas ser igualitário com recursos finitos, como os gestores exigem, é difícil. Não sou contra o SUS. Acredito nele conceitualmente, mas acho que ele precisa ser revisto em alguns pontos, como na questão de financiamento.

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