Teatro

Livro "Orgia", de Tulio Carella, inspira montagem do Grupo Kunyn

Obra do escritor argentino é um diário do Recife gay dos anos 1960

Mateus Araújo
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Mateus Araújo
Publicado em 30/12/2014 às 6:56
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Obra do escritor argentino é um diário do Recife gay dos anos 1960 - FOTO: Pri Buhr/JC Imagem
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Quando se propôs a debater a homossexualidade pelo viés do teatro, o grupo paulistano Kunyn levou à cena um dos mais elogiados espetáculos contemporâneos produzidos no Brasil sobre este tema. Em Dizer e não pedir segredo (encenado no Recife em 2012, durante o festival Trema!), o grupo enveredou por relatos e situações vividos por gays no País desde o império até os dias atuais, utilizando como palco as salas, os quartos e as cozinhas de casas e apartamentos. Em junho de 2015, a companhia estreia na capital paulista um novo trabalho, desta vez sobre o universo homossexual do Recife dos anos 1960, com base na obra do dramaturgo, jornalista, escritor e poeta argentino Tulio Carella, contextualizado nas ruas, nos parques e praças, onde o assunto vive grosso modo à marginalidade. 

Orgia ou de como os corpos podem substituir as ideias (nome provisório) envereda “pela esfera pública”, como explica o diretor Luiz Fernando Marques, o Lubi. O livro que deu base à peça, Orgia, é um diário da estada de Tulio no Recife de 1960 a 1962, quando ele, convidado pelo encenador Hermilo Borba Filho, veio dar aulas de cenografia no então recém-criado Curso de Teatro da Universidade Federal de Pernambuco. Nesta época, o autor se apaixonou pela beleza dos homens negros e mestiços recifenses, e no livro relatou suas experiências sexuais e seus fetiches. 

“Para a criação de Dizer e não pedir segredo, a gente tinha lido muito João Silvério Trevisan, o Devassos do paraíso, e dentro desse livro tem um estudo sobre Tulio Carella. Quando Orgia foi relançado (2011), eu estava no Recife dirigindo Aquilo que o meu olhar guardou para você (do Grupo Magiluth), e o li refazendo as coisas do livro. Acompanhando ‘in loco’”, conta o diretor. Ele refez o caminho dois anos depois, junto com os atores Luiz Gustavo Jahjah, Paulo Arcuri e Ronaldo Serruya. 

“A peça não é o livro. O livro é o disparador do procedimento de pensar a esfera pública, na qual a homossexualidade é vivida nas frestas, nos vãos, nos becos”. O espetáculo se passará em parques e praças, e a plateia vai ser convidada a se embrenhar no percurso e testemunhar as situações vividas pelos atores. “Não é uma peça para sentar e olhar. No processo de criação, proponho uma série de experiências dos atores e depois construo o espetáculo. Neste caso, faremos uma viagem de dez dias para a Argentina (o caminho oposto ao de Tulio), atrás de vestígios, roupa e figurino; e, em seguida, faremos derivas em parques de São Paulo que são ligados a essa questão de homossexualidade, como os Trianon, o Arouche e o Ibirapuera”, conta Lubi.

O espetáculo, ainda sem previsão de vir ao Recife, vai ser criado a partir do edital Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo, que bancará a companhia durante um ano, com um total de R$ 330 mil. Para a construção, o grupo ainda fará uma oficina na capital paulista com 15 atores homens com mais de 18 anos. As aulas começam no próximo dia 26 e durarão três meses. “Tenho vontade de olhar o passado histórico para nos trazer ao presente. E a história de Tulio, no Brasil, é possível fazer esse paralelo. Nos interessa também essa perspectiva de ser estrangeiro, de ser fora da norma, não estar dentro. A peça parte também dessa provocação.”

HOMOFOBIA 

Nem bem Orgia ou de como os corpos podem substituir as ideias começou a ser montada, já protagonizou uma situação polêmica. Após reportagem publicada há uma semana no jornal Estadão sobre a safra de espetáculos que abordarão a temática gay em 2015, leitores xingaram os grupos com comentários homofóbicos e acusações de anarquismo e comunismo. 

“Isso nos assustou, porque não tínhamos vivido isso. Alguns de nós do grupo já sofremos ataques homofóbicos, mas não dessa maneira”, diz Luiz, para quem o preconceito contra gays é uma contradição num País que “consegue construir essa imagem de liberal, mas que é tão conservador”. “Esse escancaramento dos preconceitos está ficando muito forte no Brasil, a começar pelos líderes políticos. Veja um deputado que defende o estupro, por exemplo”, afirma o diretor, ao mesmo tempo em que comemora o fato de que em 12 anos do Fomento, o Kunyn ser o primeiro grupo dedicado à exclusivamente à temática gay a ganhar o prêmio.

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