Cinema pernambucano

Cinema afrocentrado em Recife: conheça 'O fio' e 'Noite Fria'

Os curtas, que serão gravados em abril e maio por estudantes da UFPE, reflete os descontentamentos sobre como a negritude é representada no audiovisual

Rostand Tiago
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Rostand Tiago
Publicado em 24/03/2018 às 14:28
Foto: Diego Nigro/JC Imagem
Os curtas, que serão gravados em abril e maio por estudantes da UFPE, reflete os descontentamentos sobre como a negritude é representada no audiovisual - FOTO: Foto: Diego Nigro/JC Imagem
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Um inquietação tomou conta de  cineastas negros da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) na década de 1970, traduzindo esse desconforto, de forte base racial, em imagem e som. Nomes como Charles Burnett (O Matador de Ovelhas, O Casamento do Meu Irmão) e Julie Dalsh (Filhas do Pó) trouxeram narrativas poderosas, que garantiram mais dimensões para os negros, principalmente quando se compara com as representações mostradas no dito cinema clássico, no movimento intitulado L.A Rebellion.  

A quase 10 mil quilômetros dali, essa inquietação ressurgiu aproximadamente 40 anos depois em outra faculdade, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Após conversas e descontentamentos sobre como a negritude é representada no audiovisual, um grupo de estudantes de cinema, negros e negras, concebeu duas produções, O Fio e Noite Fria, com o objetivo de colocar a discussão sob a ótica de suas vivências. “O fato de sermos nós, pessoas negras, LGBT, cotistas, atrás das câmeras e contando nossas histórias, possibilita um novo discurso. Geralmente, não são nossas narrativas que estão no cinema hegemônico”, explica Anthony Ribeiro, diretor de O Fio.

 

 Anthony. Foto: Diego Nigro/JC Imagem


O jovem de 22 anos veio de São Cristóvão, cidade periférica da Região Metropolitana de Aracaju, Sergipe, e está no segundo período do curso. Depois de passagens pelas faculdades de Engenharia Química e Medicina, decidiu ir para Cinema por não se ver nessas áreas. “Eu acho que o cinema é o lugar da arte que eu mais consigo comunicar minhas ideias, colocar em imagens o que as palavras não conseguem dizer”, conta. Escolheu Recife pela atração que tinha pela cena cultural local, além de ser mais perto de casa e ter amigos na cidade.  

Anthony desenvolveu o roteiro de O Fio na tentativa de expressar como o racismo não funciona só de forma escancarada, mas também através de pormenores, muitas vezes não lidos como ferramentas de opressão. O trabalho foi aprovado em um edital da própria universidade, angariando R$ 5 mil para seu desenvolvimento. Entretanto, o edital restringe o gasto de alguns elementos da produção, como transporte, alimentação, objetos da direção de arte, fazendo com que fosse lançada uma proposta de financiamento coletivo lançada na plataforma Catarse, em que pretende-se arrecadar R$ 6 mil.

Quem levou Anthony a participar do edital e levar O Fio adiante foi a estudante Priscila Nascimento, diretora de Noite Fria. As duas produções compartilham quase que a maioria da equipe, de uma maneira afrocentrada. Para Noite Fria, Priscila decidiu que a maioria dos cargos de direção fossem assinados por mulheres. “Recentemente, depois de 32 anos, uma mulher negra dirigiu um longa-metragem no Brasil.  A primeira tinha sido Amor Maldito, da Adélia Sampaio. Em termos de mulher negra periférica nestas posições, temos bastante pouco”, afirma.

No curta, Priscila quis questionar a relevância que a mídia e os homens dão à violência contra a mulher. “O filme subverte a violência contra a mulher, colocando vários homens sofrendo essa violência e gerando reflexão a partir disso. Ele pega o típico personagem de ação masculino e coloca uma feminina no lugar. Acho que haverá um estranhamento quando verem o homem sofrendo uma violência legada à mulher”, salienta.

 Priscila. Foto: Diego Nigro/JC Imagem

 

“Eu vejo produções do tamanho da minha e de Anthony que, no processo de pré-produção, já tinham produtoras emprestado equipamento de graça. São pessoas que já possuíam um nome e famílias que, por si só, já abriam portas. Para a gente é muito diferente. Nossas famílias estão muito à margem disso”, afirma Priscila.

Anthony acredita que o espaço para produções por essas pessoas é maior fora do ambiente acadêmico, por estar livres de parâmetros impostos, sejam teóricos ou práticos. “Nunca é fácil para a gente se inserir, mas sem a pressão de academia, dá pra crescer bem mais. Plataformas como o YouTube acabam facilitando produções de baixo orçamentos, com outras linguagens e suportes”, afirma. Ele tem como referência para esse cinema mais fora do eixo a filmografia do Adirley Queirós, de Branco Sai, Preto Fica e Era Uma Vez Brasília. Gosta da experiência em que o diretor faz um cinema fora da burocracia da produção no país, assim como ele próprio tenta fazer.

Paixão cinéfila uniu São Paulo e Recife

Entre os membros da equipe de O Fio e Noite Fria, estão duas estudantes que partiram de São Paulo para trilhar suas trajetórias no Recife. Letícia Batista e Vitória precisaram sair de casa ainda jovens, lidando com a distância dos familiares queridos e as dificuldades impostas pela carreira dos sonhos.

Letícia sempre achou que estudaria história, carregava um impulso de levar a vida como educadora. Aos poucos, foi entrando em contato e se deslumbrando com a sétima arte por meio de um amigo, vendo que havia interseções entre seu desejo original e seu novo interesse. Decidiu por cinema. Nos seus planos, estavam a Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro, e a UFPE. O custo de vida e os contatos que já tinham pesaram a favor da faculdade pernambucana. Para tornar isso possível, passou a trabalhar como empregada doméstica no horário antes do cursinho pré-vestibular, juntando dinheiro para se estabilizar na futura nova moradia.

 Vitória e Letícia. Foto: Diego Nigro/JC Imagem


Nessa rotina, acabava por vezes sendo desestimulada no próprio ambiente de trabalho. “Meus patrões viviam dizendo que se eu não passasse no vestibular, pelo menos tinha meu emprego garantido lá. Acabou gerando um medo em mim de que isso realmente acontecesse e tudo virasse um ciclo, como minha mãe, que não conseguiu terminar  a escola e virou empregada”, conta. A aprovação veio e a garantia dada por seus patrões foi desprezada.

Entretanto, antes da mudança, Letícia e a mãe, Marizete, precisaram internalizar entre si como seria a vida dali em diante. Marizete preferia que a filha estudasse história, por acreditar ter mais garantia, apesar do pouco salário. Não conseguiu convencer Letícia, então passou a ajudar no planejamento e na parte financeira. “A gente sempre foi muito ligada, vivíamos só nós duas. No aeroporto, ela chorou, gritou e se agarrou em uma pilastra. As coisas foram se acalmando, hoje quando vou visitá-la, ela até pergunta brincando se eu não vou embora”, afirma.

Com Vitória, as coisas foram um pouco diferentes. A começar por sua decisão em fazer cinema desde os 13 anos. Foi aprovada no curso em Recife como segunda opção e já se planejava para voltar ao cursinho, tentando no ano seguinte em um local mais próximo. Até que sua mãe chegou e perguntou “Tu quer ir pra lá não?”. Foi tudo que se precisou para começar os planejamentos e a mudança para a cidade nova, mesmo com apenas 18 anos recém-completados. “A preparação maior foi a emocional. Eu me via muito imatura e sempre fui muito apegada, principalmente para me mudar para o outro lado do país assim”, explica.

Tanto Letícia, quanto Vitória precisaram absorver toda uma realidade referente às suas condições diante do curso e da indústria cinematográfica nacional. “Cinema é uma arte cara. A indústria é muito elitizada e funciona na base das panelinhas, tem uma galera que entra já inserida, com contatos e facilidades”, afirma Vitória. “É difícil arranjar câmera, tripé, equipamento. Isso tudo para começar a aprender, a gente não consegue extrair tanto da faculdade”, endossa Letícia.

Contudo, ambas também concordam que há um movimento visível para que a situação mude. As cotas e a entrada de mais negros na universidade é um dos pontos destacados como motivadores desse processo. Até mesmo os editais dão sinais de movimentação, como os do programa #AudiovisualGeraFuturo, do Ministério da Cultura, com cotas para diretores negros, indígenas e mulheres. Porém, Vitória ressalta que é preciso cautela. “As coisas não mudaram de fato, ainda não se dá dinheiro para negros fazer longas, por exemplo. Entretanto, a gente tem que olhar com carinho para as pessoas que estão se movimentando". Ela garante que conhecer pessoas com realidades próximas da dela é importante para seguir no curso.

 Cartazes

Foi assim na gênese de Noite Fria e O Fio, quando o grupo começou a conversar e discutir o negro representado no cinema a partir das sessões do último Janela Internacional de Cinema, em 2017. “Apesar de muitos filmes racistas terem sido passado, entramos em contato com o L.A Rebellion. Estudamos dois semestres de Cinema Mundial e nunca tínhamos ouvido falar do movimento. É sempre estudado um cinema branco, europeu”, explica. Decidiram agir para se colocar tal quais aqueles estudantes da UCLA. O Fio deve ser gravado já em abril e Noite Fria em maio.

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