VERSOS

Samarone Lima lança terceiro livro de poesia, A Invenção do Deserto

Premiado por sua obra anterior, ele lança o volume nesta sexta-feira (8/7)

Diogo Guedes
Cadastrado por
Diogo Guedes
Publicado em 07/07/2016 às 5:43
Ricardo Labastier/JC Imagem
Premiado por sua obra anterior, ele lança o volume nesta sexta-feira (8/7) - FOTO: Ricardo Labastier/JC Imagem
Leitura:

O único substituto possível para o amor, diz o escritor russo Joseph Brodsky, é a memória. A frase, uma das epígrafes do novo livro do poeta cearense radicado no Recife Samarone Lima, é uma espécie de declaração de princípios da sua escrita. As lembranças, mesmo quando dolorosas e solitárias, são uma matéria poética cheia de afeto e beleza – são pessoais, mas também criam um diálogo generoso. Como Brodsky, Samarone parece encarnar essa ideia: a memória é uma forma de amor, e o amor é uma forma de memória.

Seu livro de poemas anterior, O Aquário Desenterrado, venceu dois prêmios em 2014: o da Fundação Biblioteca Nacional e o da Bienal de Brasília. Na sexta (8), a partir das 18h, ele lança no Restaurante Fuê A Invenção do Deserto, novamente pela Confraria do Vento, construído nos últimos três anos. Na poesia de adjetivos duros de Samarone, sentimental e memorialista sem ceder a pieguice, as lembranças e heranças agora encontram também a vontade de reinventar com palavras o presente, a realidade e a solidão da escrita.

O processo de criação de Samarone continua o mesmo: começa nos cadernos com frases, anotações e esboços e vai sendo maturado ao longo do tempo. “O que este livro tem de diferente, em relação aos anteriores, é que este mesmo tempo seguiu seu rumo. Minha última publicação é de 2013. Muitas coisas importantes aconteceram na minha vida, de rara intensidade, e isso se refletiu na escrita poética. Mas, como diz o poeta Caetano, na Oração ao Tempo, ‘o que usaremos pra isso/ fica guardado em sigilo/ apenas comigo e contigo’”, explica.

Nesse intervalo, os prêmios trouxeram surpresa, mas não alteraram a relação com a criação. “Não mudou absolutamente nada. Continuo escrevendo todos os dias, por pura devoção. Como nunca ganhei prêmio com o jornalismo ou literatura, foi uma alegria, para não dizer um susto. Mas sou tão distraído que cheguei atrasado à premiação na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e o evento já tinha terminado...”, confessa.

A Invenção do Deserto ressalta o papel da escrita para Samarone como uma espécie de homenagem ao que foi ficando para trás no caminho da vida e da criação. Para definir isso, ele recorre a uma frase do poeta argentino Roberto Juarroz, autor que ele tem lido e traduzido lentamente ao longo dos anos: “A poesia é a peregrinação do meu destino através da linguagem”. “Neste livro há mesmo o processo da invenção de um destino, que abarca tudo o que fui perdendo ao longo das minhas errâncias, que são muitas”, aponta.

Ali ele busca não só reimaginar o presente, “ir para as terras distantes do sonho, mesmo estando aqui”, mas também transformar a memória, que, vertida em poesia, deixa de ser só de uma pessoa. “A poesia, para mim, é esta tentativa de celebrar a palavra, o amor, a vida. Nos meus escritos, aparecem tios, primos, irmãos, amigos, desconhecidos, amores, mortes, perdas. Escrever é como celebrar. A poesia é minha maior solidão, e minha forma mais íntima de dizer o amor”, reverbera Samarone.

HOMENAGEM - Antes dos seus primeiros livro, Tempo de Vidro/A Praça Azul, Samarone de certa forma escondia em público os seus poemas. Estavam em um blog para quem quisesse ver, mas ele não divulgava o endereço – criava assim uma espécie de segredo às claras. Num desses acasos que cabe à literatura, um homem, Arsênio Meira de Vasconcellos, começou a deixar comentários, com elogios, sugestões e análises criteriosas. Os dois se tornaram amigos, e foi Arsênio se transformou no maior incentivador da poesia de Samarone. Em outubro passado ele morreu prematuramente, vítima de um infarto súbito.

“Sem ele, creio que até hoje não teria publicado, ou teria publicado mal. Nunca vi alguém tão sedento de poesia, conhecedor de poesia, capaz de ler e entender tudo o que envolve um texto poético. Desde então, foi meu primeiro leitor, sincero e intenso. Em cinco anos, trocamos centenas e centenas de e-mails sobre poesia. Sempre me chamava de irmão. O que aprendi com ele é algo para toda a vida. O rigor, o cuidado com as palavras, o não ter medo do risco, do despojamento. Este livro é inteiramente dedicado a ele, porque sua morte, aos 40 anos, foi algo que me acertou em cheio, e demorei a processar. Fiquei órfão de um irmão”, define Samarone.

CRÍTICA - Em seus poemas, Samarone Lima parece fazer um compêndio de heranças: traumas, fraturas, saudades, mitologias familiares, histórias marcantes. Seu terceiro livro de poesia, A Invenção do Deserto, mostra que árvore genealógica, um dos grandes temas dos seus poemas anteriores, passar a conviver com outras questões – a solidão, as ausências do mundo, a vida íntima.

A dicção de Samarone continua lá, com imagens de um simbolismo cinza – “Não devem ser meus ossos/ Os fósseis do futuro” ou as “palavras cansadas/ Em um balde vazio”. Mesmo as homenagens e os poemas mais bonitos carregam o tom de melancolia – em “Madrugada”, que celebra um amigo, relata “Me contou de uma vida/ Que tinham lhe roubado/ E outra/ Que tentava encontrar”.

A Invenção do Deserto traz três partes: os poemas das margens, os poemas dedicados e os poemas acontecidos. A primeira, maior, trabalha essa reinvenção dos sentimentos, da vida que nos cerca e mesmo do presente. A literatura, ainda que fiel a sensações e eventos, é sempre uma forma de recriação, uma ampliação e redução simultânea do poder do que de fato aconteceu. Isso vale mesmo quando se escreve sobre a memória: Samarone é fiel não ao passado da sua família, mas à mitologia que ouviu e criou sobre tudo aquilo, à imagem poética que pôde tirar daquilo.

Afinal, seus versos são uma espécie de digestão da vida, uma “ ruminação como defesa/ Ou como reza”, tal qual ele escreve. Se Samarone fala em um “espantalho sem biografia”, é íntimo sem ser egocêntrico, rememora sem ser histórico, faz da sua poesia uma confissão sem derramamentos. A Invenção do Deserto continua sua obra poética anterior, mas também explora outras questões, vai além do passado. Apesar disso, em dois ou três poemas, há uma presença de jogos simples de palavras e rimas, que destoam da força da contenção dos demais textos.

Um dos versos afirma: “Enquanto escrevo/ Nada se altera entre os homens”. Também não parece ser essa a ambição dos poemas – eles são o mundo e os homens alterados por Samarone. Os desertos gestados por ele impactam justamente porque a aridez também serve para revelar a beleza.

Últimas notícias