ESCRITA

José Luiz Passos fala sobre seu novo romance e o tratamento do câncer

Em entrevista, o autor comenta O Marechal de Costas, livro que fala de Floriano Peixoto e da política atual

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 23/10/2016 às 4:16
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Em entrevista, o autor comenta O Marechal de Costas, livro que fala de Floriano Peixoto e da política atual - FOTO: Walter Craveiro/Flip/Divulgação
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Ao transformar Floriano Peixoto em personagem de um conto, o escritor pernambucano – premiado com o Portugal Telecom por O Sonâmbulo Amador – José Luiz Passos notou que havia ali uma grande figura literária. Provocado pela polarização política do Brasil e dos EUA e enfrentando o tratamento de um câncer, o autor levou para o seu novo romance, O Marechal de Costas (Alfaguara), uma reflexão sobre a origem autoritária da nossa República e sobre como nosso cotidiano político está repleto do passado. A obra, que será lançada no Recife no dia 17 de novembro e chega agora às livrarias, é o tema desta conversa. (Confira a crítica do romance O Marechal de Costas)

JORNAL DO COMMERCIO – O que despertou seu interesse no personagem Floriano? Por que ele parecia uma boa temática literária?
JOSÉ LUIZ PASSOS –
Depois de ler o meu conto Marinheiro Só, Marcelo Ferroni, meu editor, me chamou a atenção para o fato de o Floriano – personagem secundário no conto – dar um bom protagonista. Não havia pensado nisso. Comecei a ler a respeito e passei a me interessar pela figura histórica e, mais ainda, pelos paralelos entre a Primeira República e a nossa situação atual. Floriano foi o primeiro nordestino a dirigir o país. Nasceu num engenho e foi adotado pelo tio. Virou herói da Guerra do Paraguai e casou com a meia-irmã de 14 anos. Foi um vice que se recusou a convocar novas eleições – como mandava a Constituição – e reprimiu as revoltas do período com mão de ferro. Floriano consolidou a República praticamente em silêncio. Esse personagem caladão – uma “esfinge”, como diz Euclides da Cunha – é um prato cheio para o ficcionista. Acabei fascinado pela figura. Pensar nos ecos desse autoritarismo que jaz no início da nossa democracia me parece necessário e urgente hoje em dia.
 
JC – Foi difícil compor o personagem, sendo ele uma figura histórica? Como foi imaginar gestos, pensamentos, obsessões de Floriano?
JOSÉ LUIZ –
Foi difícil, sim; mais difícil do que compor as vidas de Vicente e Jurandir, meus protagonistas anteriores. Imaginei os detalhes da vida de Floriano enquanto preenchia os intervalos, lapsos e sugestões que encontrei nas biografias a respeito dele. Foram mais de 50 livros que anotei durante a redação do livro. O Marechal de Costas é meu romance mais “pesquisado”. Os eventos são, em sua maioria, fiéis aos relatos históricos. Mas o adensamento do lastro moral de Floriano e da cozinheira – sua contraparte contemporânea – é fruto da imaginação. Tentei fazer um livro que, oscilando entre o presente e o passado, estivesse no limite entre a biografia, a ficção histórica e a crônica política. Isso passou a ser uma grande preocupação minha ao longo de um ano em que a polarização da política se exacerbou tanto nos Estados Unidos como no Brasil.
 
JC – Floriano também é um homem muito solitário, uma figura construída pela mágoa. Isso também é um prato cheio para um romance?
JOSÉ LUIZ –
Claro. Ele é um herói problemático: consciência-limite da primeira ascensão das classes média e militar ao poder federal. A solidão é um dado histórico, comentado por vários autores. Mas os detalhes dessa solidão e a forma como ela se expressa são o resultado da maneira como trouxe Floriano para dentro da minha própria vida, num paralelo com a situação política – e pessoal – que enfrento, ou enfrentamos, no presente.
 
JC – O Marechal de Costas parece abordar o peso da História no presente e o peso do presente na História. É um tema que sempre o interessou?
JOSÉ LUIZ –
Pouco a pouco, entre 2013 e 2016, fui ficando cada vez mais chocado com o desenvolvimento dos eventos políticos no Brasil e nos Estados Unidos. Isso coincidiu com um período de fragilidade na minha saúde. Parei o romance que estava escrevendo para me dedicar a algo que eu pudesse usar como apoio no enfrentamento a essa situação de vulnerabilidade – do corpo e das instituições. Foi então que percebi que precisava escrever um romance sobre a política. Isso passou a ser, ao mesmo tempo, uma catarse e um modo de exorcizar os demônios do presente. Além de literatura, leio muitos livros de história. E para cada evento, ou personalidade, a História admite vários cenários possíveis. Para o ficcionista, isso não deixa de ser fascinante. A cada geração, o presente refaz o passado por meio de novas narrativas. Então, o peso da história, ou do passado, é um peso em vários sentidos articulado pelo presente, no presente. No romance, tentei convidar o leitor a perceber aspectos da História que – como reza o jargão – de certa maneira se repete como farsa.
 
JC – Floriano Peixoto se conecta ao momento atual através da história de uma cozinheira. Que elementos da nossa atualidade nos ligam ao período de Floriano?
JOSÉ LUIZ –
Há vários paralelos entre a crise atual e a conformação da República Velha. Acho que o Floriano que pus em O Marechal de Costas se conecta ao presente através de ecos e das linhas de força que nos conduziram à situação atual: um vice que assume o poder numa conjuntura de descrédito da classe política e de desacordo entre os três poderes; um contexto de crise econômica e fiscal; o recrudescimento do pensamento e de grupos conservadores; um espírito de censura e de abandono da abertura às vozes discordantes etc. A cozinheira é testemunha e comentário a essa situação. Ela observa e se choca com os eventos presentes e com as generalizações do professor falastrão, que arrota citações para entender o nexo entre os afetos e a política.
 
JC – Você incluiu, de última hora, o discurso de Dilma no Senado sobre o impeachment. Parecia urgente colocá-lo no livro?
JOSÉ LUIZ –
Já vinha incluindo discursos de Dilma, Pedro II, Napoleão e Joaquim Nabuco desde 2014, quando passei a me dedicar quase que exclusivamente ao romance. O discurso de Dilma no Senado é a culminação de um projeto político que está no centro da crise de nossa atual democracia. Fiquei tocado ao ouvi-lo. Mas a sua inclusão não significa que o romance seja pró-Dilma. Ela é uma das vozes que faz parte dessa crise. Uma vez que já tinha descrito o final da República, da vida de Napoleão e da era Floriano, era natural que eu incluísse um fecho ao período que – creio eu – se encerra com o impeachment. O discurso, em si mesmo, possui uma voltagem emocional que característica da voz da cozinheira. Era natural, na minha opinião, que ele fosse incluído.
 
JC – A política é um tema espinhoso de se abordar dentro da literatura – pode ficar panfletário, didático, raso. Temia esses riscos ao escrever sobre Floriano e o momento atual?
JOSÉ LUIZ –
Temia, sim. Mas, ao mesmo tempo, isso também é um desafio fascinante para o ficcionista. Ao contrário da literatura hispano-americana e da anglo-saxã, não temos uma tradição forte no subgênero do romance histórico ou da biografia romanceada. São poucos os livros dedicados a figuras políticas centrais, como, por exemplo, na Inglaterra, os romances recentes de Hilary Mantel sobre Thomas Cromwell e Henrique VIII, vencedores de dois prêmios Man Booker. Há também narrativas de Asturias, García Márquez e Roberto Bolaño sobre figuras políticas que vão de Simón Bolívar ao general Pinochet, além de uma tradição de narrativas sobre ditadores hispano-americanos. Então, eu me pergunto: e onde estão as nossas?
 
JC – Você sente que existe uma continuidade entre seus romances anteriores e O Marechal de Costas?
JOSÉ LUIZ –
Pessoalmente, acho que sim. Os meus três romances são sobre como o passado surge, de repente, no curso do tempo presente e confronta o protagonista, impondo a ele ou a ela obstáculos que precisam ser superados a cada passo. O espectro de certa nostalgia reflexiva paira sobre as três narrativas. Mas, de verdade, cabe ao leitor buscar as conexões entre os livros – e não a mim...

CÂNCER

JC – No período de escrita do romance, você enfrentou não só um câncer na sua família, mas tirou um ano sabático para se tratar de um câncer. Recentemente, escreveu sobre o tema no Blog da Cia. das Letras. Escrever, de alguma forma, foi e tem sido parte desse processo?
JOSÉ LUIZ –
Como já sugeri, escrever foi uma catarse. É parte de um processo terapêutico. Além disso, a escrita faz boa companhia. Ela me deu forças, traçou metas e me deu um caminho a seguir, uma razão para me levantar da cama a cada dia. Minha saúde continua a perigo. Mesmo assim, O Marechal de Costas já está de pé. E isso é um consolo.
 
JC – Wellington de Melo comentou que você vai lançar também um conto para a coletânea Aquarius. Pode falar um pouco sobre a narrativa?
JOSÉ LUIZ –
Mandei para o querido Wellington três contos: os dois que formaram as linhas narrativas do romance – Marinheiro Só e Os Móveis do Mundo – e um terceiro, recentemente publicado na revista Piauí – Uma Novela Policial. A Mariposa Cartonera planeja publicar os três em breve, em suas versões originais, sem as modificações e os cortes que fiz para incorporar os dois primeiros ao romance. Estou grato e feliz com isso. Além desses três, ele vai incluir na coletânea Aquarius um conto em que imagino a adaptação cinematográfica do meu segundo romance, O Sonâmbulo Amador. Há, nele, uma personagem que também se chama Clara.

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