PROSA

Mário Rodrigues lança no Recife romance vencedor do Prêmio Sesc

O volume de contos Receita para Se Fazer um Monstro mostra a crueldade e a violência da infância

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 12/12/2016 às 5:45
Helder Herik/Divulgação
O volume de contos Receita para Se Fazer um Monstro mostra a crueldade e a violência da infância - FOTO: Helder Herik/Divulgação
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as livrarias estão cheias de livros com receitas para ser mais feliz, para ser mais saudável, para ser um eficiente e, claro, para fazer alimentos. A ficção, no entanto, costuma procurar ser o oposto disso: uma boa narrativa serve mais para desfazer manuais do que para reiterá-los. É por isso que o título do volume de contos Receita para Se Fazer um Monstro (Record), do escritor garanhuense Mário Rodrigues, brincar com o termo – trata-se de uma anti-autoajuda, uma série de anti-fábulas, como descreve o autor.

A obra de Mário foi uma das vencedoras do Prêmio Sesc de Literatura deste ano na categoria contos. Hoje, a partir das 19h, no Sesc Santa Rita, ele faz o lançamento do livro no Recife junto com Franklin Carvalho, da Bahia, que venceu a categoria de romance da honraria com Céus e Terra.

Mário, que tem dois romances publicados, já havia batido na trave em edições anteriores: ficou entre os finalistas e ganhou menção honrosa. “Recomendo o prêmio para autores inéditos por dois motivos. Primeiro, a Record é uma das editoras com melhor distribuição, que é um problema no Brasil. Depois, porque o Sesc faz um roteiro com os autores vencedores para lançamentos e eventos, o autor circula junto com o livro”, destaca.

Receita para Se Fazer um Monstro é um volume de contos dividido em sete partes. Com trechos curtos, de cerca de duas páginas cada, traz relatos da infância – e de parte da adolescência – de um mesmo personagem, o que empresta para o volume um ar de romance. “É um híbrido. De fato, queria brincar com a fronteira dos gêneros, com a ambiguidade. Acho que o livro funciona como um caleidoscópio: dependendo de como você o observar, ele fica diferente”, explica. “Queria deixar o leitor na corda-bamba entre os dois formatos.”

INFÂNCIA

No livro, o narrador é sempre o mesmo: um adulto sem nome, que conta as histórias de quando era criança. Ele (e um pouco de cada um de nós) é o monstro de que o título fala, e sua vida é a receita. “Eu penso muito na estrutura do livro antes de fazê-lo. Antes de começar, eu queria fazer um livro sobre a maldade – afinal, vivemos em um mundo racista, misógino, homofóbico. Queria entender de onde vem a maldade. E voltei à infância, pois dizem que lá você encontra a explicação do adulto. E a infância é cruel”, conta.

Os contos mostram um personagem que sofre um tratamento cruel da mãe e do irmão e, ao mesmo tempo, é capaz de humilhar ou agredir sem piedade os colegas e desafetos. “Cazuza fala da inocência cruel das crianças. E, nos anos 1980, a infância era mais cruel: ainda não havia o politicamente correto”, aponta. Com ironia, o narrador vai falando das lições, sempre sádicas e cínicas, que foi tirando de cada vingança, agressão e perversão.

Mário fala de Receita para Se Fazer um Monstro como uma anti-fábula não é por acaso: se elas tentam domesticar a infância com uma moral bem explicada, as histórias do livro trazem morais invertidas, dicas para ser um humano pior. “Quis revelar um universo que desromantiza a infância. Não há esperança nem ali e nem na vida adulta”, define.

Os contos também possuem uma unidade na forma da escrita. O leitor pode procurar, mas em nenhum momento vai encontrar uma vírgula sequer na obra: o narrador-personagem prefere os travessões e os dois pontos, que o lembram de espingardas de cano duplo. “Além do tema e do personagem, sempre penso antes na linguagem do livro. A ideia era mostrar como a maldade foi infundida no personagem pela mãe, pelo irmão, pelas brincadeiras, como ela ficou na veia dele mesmo. A linguagem desse sujeito precisava ser bruta, crua. Ele quebra as frases no meio como quebra os ossos e dentes dos outros meninos”, reflete.

Autor de Garanhuns, Mário é mais dos talentos literários da cidade, que revelou nos últimos anos nomes como Helder Herik e Nivaldo Tenório, que criaram juntos a editora U-Carbureto. É difícil especular a razão de tantos escritores consistentes juntos. “Pernambuco como um todo é forte literariamente. Poderia romantizar Garanhuns com o frio e o Festival de Inverno, mas não é isso. É uma coincidência termos surgidos ao mesmo tempo, na mesma geração. Somos, mais do que autores, grande leitores, leitores críticos”, defende Mário, que cita outro nomes promissores como Paulo Gervais, Mateus Rocha e Wagner Marques. 

CRÍTICA

Como muitas crianças, o narrador-personagem de Receita para Se Fazer um Monstro (Record) gostava das malhações de Judas. Saboreava destruir seus pedaços, mas não tinha nenhum ódio dele por um erro de 2 mil anos. “Não o conhecia mas mesmo assim gostava de me vingar. E concluí: a indiferença violenta dá mais prazer do que a vingança odienta”, afirma.

A cada duas páginas, os contos da obra de Mário Rodrigues trazem receitas assim, amargas. Aqui, a infância não é nada do universo idealizado da nostalgia, dos dramas íntimos, das descobertas lúdicas, do prazer da memória. A linguagem das crianças é a violência, a humilhação e a vingança.

O narrador do volume de contos reconta seu passado, tudo indica, não para buscar autocomiseração ou para reavaliá-lo, mas para extrair dele o que formou seu caráter. Em certa medida, Receita para Se Fazer um Monstro tem seus ares de romance de formação – de deformação, como se poderia melhor dizer. O adulto insinua que seu trabalho é matar pessoas, e se orgulha de fazer a violência parte do seu ofício e cotidiano, o denominador comum de qualquer situação.

A obra tem uma estrutura bastante esquemática: do começo ao fim, pequenos relatos sobre as brincadeiras, os amigos, os bichos, as mulheres, a natureza, os trabalhos e a família se alternam. A própria natureza da obra cria o impacto inicial. De uma história cruel, Mário habilmente mostra que é sempre possível extrair uma lição moral igualmente cruel. No entanto, a repetição ao longo do livro vai diluindo a força desse formato, em que todos os eventos são metáforas de algum modo de agir na vida adulta. Assim, o que vai sustentando o volume é o desenvolvimento sutil de um arco narrativo maior – a perda da mãe e suas consequências na vida do personagem – sem deixar o mundo breve dos contos.

É também nessa progressão que é possível ver algumas das nuances da obra – é interessante ir notando que a maldade, apesar de impiedosa e oportunista, também tem sua forma torta de buscar a justiça. Receita para Se Fazer um Monstro, no fim, ajuda a revelar a incubadora de monstros que a infância pode ser, e também o que de monstruoso muitos já tiveram.

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