Festival de Inverno

FIG 2016: O nome dela é Gal

Baiana Gal Costa faz show antológico com Estratosférica em Garanhuns

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 25/07/2016 às 10:21
Foto: Laís Domingues/Fundarpe/Divulgação
Baiana Gal Costa faz show antológico com Estratosférica em Garanhuns - FOTO: Foto: Laís Domingues/Fundarpe/Divulgação
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"Massacro meu medo,/ Mascaro minha dor, /Já sei sofrer./ Não preciso de gente, que me oriente, /Se você me pergunta /Como vai? / Respondo sempre igual, /Tudo legal,/ Mas quando você vai embora, / Movo meu rosto no espelho, / Minha alma chora": quando Gal Costa canta os versos simples e diretos como a faca só lâmina que é a letra do clássico setentista Mal Secreto, de Jards Macalé, não é apenas a baiana que abre a boca. Gal canta com a voz de uma geração sem ponto de partida ou limite de chegada.

Gal, sua voz e posturas, ali lembramos, é a moldura da poética musical brasileira que, desde os anos 1970, vem servindo de matriz para tantas outras poéticas vascularizadas pelo Brasil. "Estratosférica", o disco que dá nome ao novo show, é um álbum de canções rigorosamente novas. De Marcelo Camelo a Mallu Magalhães, ou aos pernambucanos Lirinha e Junio Barreto, todos compositores mais jovens que sua geração transformada em cânone da MPB, são o recheio do disco. Mas mesmo quando canta o novo, Gal roça sua rajetória. Em cena, o lindo samba-bossa Espelho d´água, de Camelo, por exemplo, parece ter existido desde sempre. 

E Gal, ali, no palco, a voz afiadíssima aos 70 anos, 50 anos de carreira, mostra o tempo como aliado. É um show grande. De grandes sucessos ocultos. Em que a baiana, ao se visitar, confirma como gerações sucessivas tem se valido de sua musicalidade para a construção de afetividades coletivas. Com uma ou outra exceção, o concerto é estruturado pelas grandes canções do lado B de discos que passam longe daquela Gal (rapidamente) mais radiofônica e popularesca dos anos 1980. Ainda que vários ritmos - inclusive um belíssimo voz e violão em "Sim, foi você", a primeira bossa de Caetano - atravessem o show, há sempre um acento roquenroll subscrito pela direção musical assinada por Pupillo, o hero band da Nação Zumbi. "Ando mesmo interessada em momentos da minha fase roqueira", disse Gal, dias antes, à reportagem do JC.

 

"Estratosférica" nos dá a sensação de uma linda visita ao Gal Fatal - A Todo Vapor, disco que pode, sem esforço, resumir a produtiva década de 70 no Brasil. Tanto que, colado com a novíssima "Sem medo nem esperança", um rock bem comportado assinado por Antônio Cícero e Artur Nogueira, o show é aberto com a supracitada e outrora "maldita" canção de Macalé.

 

A banda é um lago de penas ouriçadas onde a baiana nada sem risco de afogamento. Com a guitarra de Pedro Sá à frente, dá a temperatura adequada para a contemporaneidade da voz de Gal. Impressiona como o tecladinho meio cafona futurista de "Não Identificado" (Caetano) não envelhece - ao contrário, condensa várias das ironias do contemporâneo e continua

lindamente cafoninha e futurista. Guitarras de fôlego transformam os sucessos "Cabelo" e "Os Alquimistas estão chegando" em voragem. A ênsafe na palavra "sexo" marca também "Pérola Negra", de Melodia, em classicaço.

Sozinha, e de novo nos levando ao Fatal dos anos 70, ela canta "Acauã", de Gonzagão, com a navalha de um blues. Impositiva, enérgica como a jovem tropicalista que foi, amplifica com a agressividade necessária "Como dois e dois", de Caetano. Não apenas cantora, nesse show Gal é também grande intérprete. "Tenho me jogado no mundo sem medo, nem esperança. Esse show é para celebrar isso", comenta.

 

Estratosférica, o disco que sucede o lindamente estranho Recanto (um disco de Caetano no corpo e na voz de Gal, como ambos, em situações diferentes, definiram), não reverbera tanto quanto o anterior. Entre o convencionalismo e a ousadia não mais que tímida, o álbum ganha uma amplitude muito maior quando ao vivo. Em cena, Gal faz tudo encontrar qualquer sentido oculto. O tempo, repita-se, lhe tem sido aliado. Com uma auto-ironia "sem perversidade nem medo", ela resume na

canção-apresentação do bis: "Meu nome é Gal, tenho 70 anos..." para listar uma série de novos compositores que, como Roberto e Macalé no passado, fazem hoje sua cabeça.  A ligeira rouquidão, agravada com um show duas noites antes em Salvador, não esconde como os anos não apagam o cristalino de sua voz. Se o Recife já levou duas bolas-pretas com apresentações desmarcadas de última hora, Garanhuns, em praça pública, teve a felicidade de assistir à Estratosféria - um show, sob vários aspectos, antológico de uma cantora que, felizmente, abandonou a apatia de anos atrás pela grandeza de sempre.

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