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Bob Dylan reinventa clássicos da música popular americana

Cantor dedica álbum triplo a repertório gravado por Sinatra

JOSÉ TELES
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Publicado em 04/04/2017 às 11:40
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Cantor dedica álbum triplo a repertório gravado por Sinatra - FOTO: foto: Divulgação
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Em 2004, quando lançou o álbum A Foreigner Sound, Caetano Veloso feriu brios nacionalistas ao afirmar 0que a música americana era a mais bela do mundo: "Em sua maioria, os clássicos americanos são obrasprimas de composição e alcançam a perfeição da estrutura da canção", reforçou a asserção. Não por acaso, este songbook estelar foi criado nos EUA. No final do século 19, imigrantes dos mais diversos países entraram nos Estados Unidos, vistos como a terra prometida, da liberdade e da oportunidade. Imigrantes ou filhos de imigrantes foram os primeiros grandes autores da música popular americana no início do século 20.

Irving Berlin (1888/1989), era russo, George Gerswhwin (1898/1937) e o parceiro Ira Gerswhin (1896/1983), eram filhos de imigrantes judeus russos, enquanto os pais de Lorenz Hart (1895/1943), vieram da Alemanha. Para fornecer material para musicais da Broadway, filmes de Hollywood e os astros do disco, a partir dos anos 20 reuniram­se em Tin Pan Alley, um trecho da Rua 28, entre as quinta e sexta avenidas, um conglomerado de editoras musicais, onde compositores trabalhavam num espécie de linha de montagem, que continuou mesmo com o advento do plebeu rock and roll: era a turma do Brill Building. Entre 1920 e 1960 foi criado um estupendo repertório, que passou a ser menos requisitado a partir de 1964, quando os Beatles invadiram os EUA e o mundo. Hoje, restam poucos dos arquitetos do the Great American Songbook, Burt Bacharach, é um deles.

Bob Dylan também foi um dos responsáveis por tirar de linha a clássica canção americana, com uma obra que, ao longo de 55 anos, é ela mesma um The Great American Songbook de um só autor, de qualidade e quantidade prodigiosa, como atesta o Nobel de Literatura que lhe foi outorgado no ano passado. Coincidentemente, o prêmio foi anunciado quando Dylan imergira no passado da música americana. Um mergulho profundo, que gerou os discos Shadow of the Night (2015), Fallen Angels (2016) e Triplicate, álbum triplo, lançado no final de março. A imersão é também uma homenagem a Frank Sinatra, o mais importante intérprete deste repertório, cujo centenário foi comemorado em 2015.

Se Fallen Angels já foi foi recebido com surpresa, pela insistência no tema, Triplicate causou espanto. Os standards americanos não eram estranhos ao repertório de Dylan, que gravou, por exemplo, Blue Moon (Rodgers/Hart, 1934), no álbum Self Portrait (1970. Uma semana antes de lançar Triplicate, Bob Dylan publicou em seu site oficial uma entrevista, feita pelo jornalista Bill Flanagan, sobre este que é seu mais longo projeto de canções não autorais. Perguntado o motivo de um disco triplo, explicou: "Melhor que sejam lançado ao mesmo tempo, porque tematicamente são interconectados, um é sequência do outro, e cada um explica o anterior".

Embora seja considerado o maior compositor americano vivo de música popular, Dylan curva­-se a excelência das canções do The Great American Songbook, uma classificação abrangente e ao mesmo tempo excludente, como a sigla MPB, que servia para designar um subgênero musical surgido na era dos festivais, a partir de 1965: "Nestas canções estão alguns dos mais tocantes negócios que já se botou num disco e quis lhes fazer justiça. Agora que as vivi, e passei por elas, as compreendi melhor. Elas te liberam das correntes do mainstream em que te prenderam, (músicas) que podem até soar diferentes, mas são essencialmente iguais. A música e a canção modernas tornaram­se tão institucionalizadas que nem se nota... há nestas canções um realismo objetivo, uma fé na vida comum, exatamente como o rock and roll no começo".

Cada disco de Triplicate tem dez faixas e a duração de 32 minutos, em todos formatos: "Os 32 minutos, o tempo, é o limite de tempo de um long play, quando o som fica mais poderoso. 15 minutos em cada face. Meus discos sempre ficaram sobrecarregados, em ambos os lados. Minutos em demasia para serem gravados ou remasterizados apropriadamente. Minhas canções era muito longas e não se encaixam no formato de um LP. O som era baixo, e se precisava aumentar o volume até dez pra se escutar direito. De maneira que, pra mim, estes CDs representam os LPs que eu deveria ter gravado".

A referência e deferência às canções do american songbook levou Dylan a fazer concessões até mesmo no modo como costumava gravar. Muitos de seus clássicos foram feitos, ou refeitos no estúdio, a banda aprendendo a melodia, enquanto ele escrevia a letra. Blonde on Blonde, considerado seu melhor álbum, teve este método de criação. Com Triplicate (assim como nos dois discos anteriores), as canções foram gravadas sem overdubs, ou seja, vocal e instrumentos ao mesmo tempo, o som que se escuta é o mesmo de como for registrado, sem retoques. Na entrevista, o jornalista questiona a voz de Dylan em September of My Years, na qual Dylan está mais rouco, com menos força na interpretação:

"Não me importa que minha voz fraqueje aqui ou ali, o que me incomodaria seriam notas soltas, ou acordes errados. Em September of My Years não se ajeitou nada. Só se arranjam as coisas quando se gravam os vocais separadamente, e não fizemos isto. Foi um disco feito ao vivo. Minha voz soando assim aqui e ali, significa que a gravação foi feita de manhã cedo, mas não influi no geral, não me preocupa", comenta Dylan, que não admite o tributo a Frank Sinatra, mesmo que das 52 canções gravadas nos três álbuns apenas uma não conste da obra do cantor: "Mas um bocado de gente também gravou estas músicas, o que acontece é que ele fez as melhores versões. Quando gravei tive que fazer de conta que nunca tinha escutado Sinatra, que ele não existiu. Ele é o guia. Mostra o caminho a seguir e te leva até a entrada, daí em diante você vai por contra própria".

Bob Dylan conta que conheceu Frank Sinatra pessoalmente na casa do cantor: "Acho que ele conhecia The Times They Are a­-Changin? Blowin? In the Wind. Sei que gostava de Forever Young, ele me disso isso. O cara era divertido. A gente estava no pátio da casa dele, à noite, conversando, e ele disse: Eu e você, camarada, temos estes olhos azuis, somos lá de cima, e apontou para o céu. Estes outros vadios, são lá de baixo". Dylan participou de um tributo a Frank Sinatra, na TV, mas foi o único que cantou música própria, Resteless Farewell, segundo ele a pedido do próprio homenageado.

DISCO

Na trinca de álbuns, Bob Dylan canta seguindo um padrão de interpretação convencional, pronuncia com apuro as palavras, nunca improvisa a melodia, chega o mais perto possível da ideia que se tem de um crooner. E aí deve ter seguido os ensinamentos de Frank Sinatra, que se considerava parte de uma orquestra: "A diferença é que meu instrumento é o microfone", esclarecia. Poucos cantores usaram o microfone como Sinatra. Estas são canções do repertório dele, reinterpretadas por Bob Dylan, para o brasileiro seriam como um Carinhoso (Pixinguinha/João de Barros), ou Risque (Ary Barroso). Cresceram com elas, fazem parte de suas vidas.

Dylan selecionou um punhado de canções emblemáticas na voz de Sinatra, mesmo negando o tributo. September of My Years, de Jimmy Van Heusen e Sammy Cahn, a dupla mais gravada por ele, assim como Stardust, sua canção preferida. A primeira que cantou quando se tornou crooner de Harry James e a primeira que gravou, como crooner de Tommy Dorsey. Regravações assim explicadas por Dylan: "Estas músicas foram gravadas para o homem da rua, o homem comum, o cara do cotidiano. Talvez fã de Bob Dylan, talvez não. Não sei".

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