Centenário

Adelino Moreira, poeta centenário dos amores suburbanos

Nelson Gonçalves foi seu maior amigo e principal intérprete

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 01/04/2018 às 6:58
foto: reprodução revista Radiolândia
Nelson Gonçalves foi seu maior amigo e principal intérprete - FOTO: foto: reprodução revista Radiolândia
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Nelson Gonçalves já era um nome consagrado quando conheceu Adelino Moreira, o compositor que faria dele o maior vendedor de discos do País. Na quarta-feira, 28 de março de 2018, Adelino Moreira de Castro (nascido em Gondomar, Portugal, mas desde um ano de idade no Brasil), completaria cem anos.

 Um centenário pouco lembrado de uma vasta obra, recheada de clássicos. Negue,  A Volta do Boêmio, Escultura, A Deusa do Asfalto, Flor do Meu Bairro, Devolvi, Cinderela, Beijo Roubado, Êxtase, Última Seresta – a lista é longa. E não apenas das canções, mas igualmente daqueles que as gravaram.

 Adelino Moreira abandonou os estudos cedo para trabalhar na joalheria do pai. Nas horas vagas, compunha. Começou a fazer música aos 17 anos, mas ia guardando na gaveta, pois ninguém se interessava por ela. Estava com 32 e supunha que ia passar o resto da vida como joalheiro. Eis que um amigo comum o apresentou a Nelson Gonçalves, que decidiu gravar Última Seresta, primeira composição de Adelino lançada em disco.

 “Mandou-me que esperasse no bar. Esperei e ele veio. Ouviu a música e, aparentemente, gostou. Despediu-se de mim. Fiquei por ali, conversando com amigos. Mas toda a vez que Nelson retornava ao bar, pedia que eu repetisse a música. Eu já estava ficando encabulado. Pensei que ele estivesse me gozando. Mas não. 15 dias depois, ele gravou essa minha música. Não foi um sucesso na época mas, agora, já vendeu quase 100 mil discos”, contou Adelino sobre o encontro com Nelson Gonçalves, em 1952, em uma entrevista, em 1961, à revista Radiolândia.

 Última Seresta foi lado B de um 78 rotações com Meu Sonho de Amor (Violino Triste), na face A. Até 1961, Nelson Gonçalves já havia gravado 53 composições de Adelino Moreira, algumas assinadas com o cantor (Adelino garantia que não cedia parcerias). Mas o privilégio de gravar e frequentar as paradas, com canções de um compositor com tanta empatia com o público, não pertencia apenas a Nelson Gonçalves.

 A potiguar Núbia Lafayette, por exemplo, foi descoberta por ele, que a levou para a RCA e lhe deu o primeiro grande sucesso, o bolero Devolvi (“Devolvi/ O cordão e a medalha de ouro/ e tudo que ele me presenteou/ devolvi suas cartas amorosas/ e as juras mentirosas/ com que ele me enganou”). Ângela Maria, uma das cantoras de maior público do Brasil nos anos 1950, tornou-se “freguesa” contumaz de Adelino Moreira.

 Durante uma década (de 1955 a 65) ele foi uma máquina de sucessos, provando que era mais forte do que seus intérpretes. Quando se afastou de Nelson Gonçalves, num período conturbado da biografia do cantor, o final dos anos 50, Adelino passou a distribuir composições para outros intérpretes. Um dos maiores hits de 1959 foi o samba-canção Ciclone, que fez para Carlos Nobre, um dos muitos imitadores de Nelson Gonçalves, com quem reataria a amizade dois anos depois. Adelino alegou que só deu a música para Carlos Nobre para que Nelson Gonçalves entendesse que não era insubstituível.

 Foi uma amizade de ótimos resultados financeiros. O sucesso de Argumento, Meu Desejo, Êxtase, Meu Vício É Você e, sobretudo, A Volta do Boêmio, renderam a Adelino Moreira, em 1960, o suficiente para comprar, à vista, um palacete por seis milhões de cruzeiros na Zona Norte carioca, andar de carro importado e deixar de lado os “bicos” (foi teatrólogo, sem muito êxito, e radialista).

 Sabia a fórmula do sucesso e seus limites. Não aderia a modismos, era basicamente do samba-canção (e marchinhas carnavalescas). Em suas letras pintava cenários suburbanos, habitados por manicures, mariposas (mulheres atraídas pelas luzes das casas noturnas), cinderelas e uma fartura de desencontros amorosos.

 Uma das canções que espelham bem o universo kitsch do compositor é Escultura, com devaneios de um romântico que cria uma mulher com retalhos de personagens femininos, reais e imaginários: “Comecei a esculturar/ no meu sonho singular/ essa mulher fantasia/ dei-lhe a voz de Dulcineia/ a malícia de Frineia/ e a pureza de Maria/ em Gioconda fui buscar/ o sorriso e o olhar/ em Du Barry o glamour/ e para maior beleza/ dei-lhe o porte de nobreza/ de madame Pompadour”.

 Há 60 anos, Escultura foi campeã de vendagem, comprada por pessoas que provavelmente não tinham ideia de que Frineia foi uma célebre prostituta da Grécia antiga. Entrevistado por Ary Barroso, num programa de TV, em 1962, o compositor de Aquarela do Brasil queixou-se a Adelino Moreira de não fazer mais sucesso e perguntou se ele poderia lhe explicar o motivo. Estar diante de um mito da música brasileira (que morreria dali a dois anos), não intimidou Adelino:

 “O senhor começou a compor músicas para meia dúzia de criaturas que o endeusam e colocam o senhor no lugar em que o senhor não se encontra. O senhor se esqueceu completamente daquela massa que o elegeu como o maior compositor brasileiro até dez anos atrás. Se o senhor volta a compor para essa massa popular, voltará a fazer o mesmo sucesso”.

CRÍTICA

 Do sucesso Adelino Moreira desfrutava, mas estava longe de ter o prestígio de Ary Barroso. A crítica musical malhava os versos de suas composições. Válter Silva, conhecido como Pica-pau, que produziu alguns dos concertos iniciais da bossa nova, recusava-se a tocar composições de Adelino no programa que apresentava na Rádio Bandeirantes. “E como faz na flor qualquer abelha/ sugarei tua boca vermelha/ num beijo espetacular/ depois quero ouvir-te desvairada/ dizer quase alucinada/ nunca mais vou te deixar”, versos feito esses de Êxtase eram cantados País afora, no rádio, e por seresteiros, em mesas de bar.

 O compositor Fernando César, de grande sucesso no início dos anos 1960, especialista em versões (fez, por exemplo, a de Marcianita para Sérgio Murilo), definiu com precisão a música de Adelino Moreira: “O Adelino escreve pra gente que toma traçado (coquetel de cachaça com vermute), frequenta botequins, vai ao enterro de todos os amigos, dá cabeçadas nas vitrinas, usa sapato preto com meia branca, diz ‘com perdão da palavra’ quando fala em suínos, e ‘Deus te ajude’ quando alguém espirra, ou seja, escreve para a grande maioria”.

 Mas o próprio Adelino Moreira fazia parte da “grande maioria”. Apesar de faturar milhões, morava em Campo Grande, no Rio: “Na Zona Sul, somos quase obrigados a participar da vida boêmia e aderir à bossa nova, e eu prefiro continuar como sempre fui”, comentou em 1960. Em 1962, no auge do sucesso da bossa nova, a fustigou, , com Seresta Moderna, um samba-canção, gravado por Nelson Gonçalves: “Um gaiato cantando sem voz/ um samba sem graça/ desafinado que só vendo/ e as meninas de copo na mão/ fingindo entender/ mas na verdade, nada entendendo”.

 Adelino Moreira morreu, em 2002, aos 84 anos, de um infarto, um óbito que ganhou grande cobertura da imprensa. Àquela altura, sua obra tinha sido reavaliada e ele desfrutava o status de mestre da MPB. Artistas de nichos diferentes o regravaram. Maria Bethânia levou Negue de Volta às parada em 1983 (no álbum Álibi). Em 2001, Negue foi incluída no CD São Vicente di Longe, de Cesária Évora, e a mineira Pato Fu gravou A Volta do Boêmio em 1995, no CD Gol de Quem?

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