Memória

Cazuza, o poeta exagerado, completaria 60 anos hoje

O tempo ratificou a consistência da obra do roqueiro carioca

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 04/04/2018 às 9:43
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O tempo ratificou a consistência da obra do roqueiro carioca - FOTO: foto: divulgação
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No final de 1981, uma notinha no Jornal do Brasil citava a apresentação de um desconhecido grupo de rock: “Quinta e domingo, no palco da TV Globo, um show com um nome novo da MPB, o conjunto Barão Vermelho, que promete animar ainda mais a feira” (referia-se à Feira da Providência, evento que acontece até hoje no Rio).

 Um ano depois, no mesmo JB, numa matéria de página inteira, assinada por Jamari França, mapeava-se a nova e farta safra de roqueiro do país, rotulada de nova jovem guarda. “O pacote do rock vai rolar neste verão”, o título da matéria, veio de uma frase do vocalista do Barão Vermelho, ainda tratado por nome e sobrenome, Cazuza Araújo, ou melhor, apelido e sobrenome. Seu nome de batismo era Agenor de Miranda Araújo Neto, então com 24 anos. Hoje Cazuza completaria 60 anos.

 Ele costumava dizer que não acreditava em mitos, porque cresceu convivendo com mitos, de Paulo Mendes Campos a Caetano Veloso, Novos Baianos, Elis Regina ou Ney Matogrosso que, certo dia entrou na casa de Cazuza, que ainda dormia: “O Ney foi no quarto, começou a bater na minha cara, nós temos intimidade para isso, gritando para eu acordar e ganhar dinheiro. Ele ouviu o disco Barão Vermelho 2 e resolveu gravar Pro Dia Nascer Feliz. Eu disse não, pelo amor de Deus, esta é a nossa música de trabalho, grava outra. Ele bateu o pé. E acabou sendo nossa fada madrinha”, contou Cazuza ao JB, quando o segundo álbum do grupo foi lançado.

 Ney pavimentou o caminho pra Cazuza entrar no rol dos mitos da MPB, ao estourar com uma canção de um autor da nova jovem guarda. Em meados do anos 80, o rock and roll ainda continuava sendo considerado um gênero menor. Foi preciso que um intérprete consagrado da MPB como Ney mostrasse que não era bem assim. Cazuza era filho de um dos mais importantes executivos de gravadora do país, João Araújo, que mais tarde, mesmo se recusando a contratar a banda, abriria portas e janelas para o Barão Vermelho.

 Araújo, boêmio, comunicativo, simpatizado por todos, trabalhou em várias gravadoras (inclusive na recifense Rozenblit) até se tornar o fundador e primeiro presidente da Som Livre, o braço sonoro das Organizações Globo. Ele se encontrava na Europa quando a carreira de Cazuza com o Barão Vermelho começou a decolar:

 “Quando Guto Graça Mello e Zeca Neves (Ezequiel, empresário e mentor do grupo) entraram em minha sala com a fita nas mãos dizendo que queriam gravar de qualquer jeito, eu disse: não há hipótese, eu não vou gravar com o Cazuza e nem o Cazuza vai querer gravar comigo! Se não der certo, vão dizer que eu lancei só porque ele é meu filho. A situação é muito desconfortável. Não gosto de favoritismos”, revelou à Regina Echeverria, autora do livro Cazuza - Só as Mães São Felizes (1997).

 Segundo Lucinha Araújo, a mãe, Cazuza só descobriu que se chamava Agenor aos três anos, quando entrou na escola. Nome foi uma homenagem ao avô paterno (um usineiro pernambucano que se mudou para o Rio). Porém, antes mesmo de nascer ela já chamava o filho de Cazuza (que os mais íntimos tratavam por Caju). Uma criança mimada que, desde a infância revelava temperamento rebelde, escancarado na adolescência. Os conflitos com mãe e pai eram cotidianos, que tentavam controlar o que não tinha controle. Foi assim, por exemplo quando Cazuza, com 18 anos, chegou em casa dizendo que ia para Salvador. O pai quis impedir, acabaram se estapeando, envolvendo a mãe na confusão.

Cazuza criava problemas onde quer que fosse. A mãe confessou que, mais de uma vez, precisaram dar propinas à polícia para livrá-lo da cadeia, sempre por posse de drogas. Depois da briga com o pai, saiu de casa, teve empregos, fugazes, na Som Livre e na RGE. Não precisava trabalhar para viver. Londres, San Francisco, onde quer estivesse havia encrencas. Na Califórnia sofreu um acidente na estrada. A mãe estava no carro, sofreu um corte na testa, que precisou de 18 pontos para ser fechado.

 MÚSICA E POESIA

 O potencial de Cazuza provavelmente teria aflorado, independente de suas trapalhadas, mas dificilmente teria a mesma receptividade, se não estivesse no lugar e época certos. Com os militares arrumando as malas para voltar à caserna, o Brasil tomou-se de euforia. Músicos de uma geração que cresceu sob a ditadura entraram em cena, com canções pra cima, ensolaradas. Não faltou palco no Rio para esta turma: o Circo Voador, de Perfeito Fortuna, o Noites Cariocas, de Nelson Motta, no Morro da Urca, os mais badalados.

 Com poucas exceções, Cazuza fazia as letras, Frejat, Dé ou Guto Goffi as músicas. Mas se atribuía quase sempre a autoria apenas a Cazuza. A imprensa logo passaria a se referir ao grupo como Cazuza e o Barão Vermelho. Em 1985, logo depois da consagração no Rock in Rio, ele sairia da banda. Caetano Veloso chamou atenção para Cazuza, em um show, no Rio, cantando Todo Amor que Houver Nessa Vida, e apontado-o como o maior poeta da nova geração.

 As letras de Cazuza eram confessionais, inspiradas em experiências e episódios pessoais. Exagerado, um dos hits da carreira solo, era como se definia: “No Carnaval eu sinto que fica todo mundo igual a mim no ano inteiro. Não me dá ânimo ver todo mundo obrigado a ficar contente e louco só porque é Carnaval”, comentou, explicando o motivo de não gostar da festa.Bilhetinho Azul, do álbum de estreia, cita alguém que larga tudo e vai para a Bahia. Maior Abandonado era como se sentia, embora a mãe tenha sido onipresente nos 32 anos em que viveu.

 Assim como anotava nos canhotos do talão “maconha” ou “pó” sem se incomodar que soubessem para que finalidade os cheques, tampouco ele escondeu os sinais do HIV do público. Sinais manifestados ainda quando estava no Barão Vermelho, confidenciou Lucinha Araújo no livro de Regina Echeverria: “... Cazuza caiu de cama, com um febrão de 40 graus. Ele suava frio. Chamei o médico, que tratou dos sintomas como se fossem de uma gripe comum e receitou alguma coisa. Na época, não dei nenhuma importância, mas pensando nesse episódio, depois que tudo aconteceu, suspeito que algum sintoma de sua doença começara a se manifestar”.

 Cazuza só se assumiria soropositivo em 1989. Logo em seguida, a revista Veja publicou uma de suas mais polêmicas edições. Estampava na capa o cantor extremamente debilitado, com a chamada: “Uma vítima da Aids agoniza em praça pública”. Cazuza magérrimo (com apenas 40 quilos), cabelos ralos, o bronzeado mal escondendo as manchas no rosto. Ele morreria em 7 de julho de 1990. Quase 28 anos depois, Cazuza continua sendo lembrado, regravado e reverenciado, o que lhe confirma o talento, ratifica a afirmação de Caetano Veloso.

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