Samba

Em Teresa Cristina, o feitiço de Noel

Sob direção de Caetano Veloso, cantora apresenta show com repertório do poeta da vila

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 18/04/2018 às 17:31
Fernando Young / Divulgação
Sob direção de Caetano Veloso, cantora apresenta show com repertório do poeta da vila - FOTO: Fernando Young / Divulgação
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No show em que se dedica à obra do homem que diluiu a fronteira entre o samba do morro e o do asfalto, Teresa Cristina não canta Feitiço da Vila. “Eu nunca cantei essa música, mas não é por causa do Caetano. Como negra, tem versos que me incomodam muito”, diz a cantora que, sob direção do amigo Caetano Veloso, traz, nesta sexta, ao Recife, o show Tereza Cristina Canta Noel: Batuque é um Privilégio. No palco intimista do Teatro RioMar, a diva cool do samba imprime sua voz suave, aderente e aveludada, ao repertório do chamado Poeta da Vila.

O repertório é fundado em standards populares e outros menos óbvios do compositor precoce que, confirmando a tal maldição da idade na música, viveu apenas até os 27 anos como uma das matrizes do samba como lastro da identidade nacional. Sem chance, como dito, de incorrer nas estrofes de “Lá, em Vila Isabel / Quem é bacharel / Não tem medo de bamba (...) / São Paulo dá café / Minas dá leite / E a Vila Isabel dá samba (...)”. Sobretudo quando os versos afirmam que “A vila tem um feitiço sem farofa / Sem vela e sem vintém / Que nos faz bem / Tendo nome de princesa / Transformou o samba / Num feitiço decente / Que prende a gente (...)”

Feitiço da Vila, a canção, está no centro de uma declaração algo polêmica de Caetano sobre a afetação racista em parte da obra do maior poeta do samba brasileiro. Quando trabalhava em sua recente trilogia de discos “roqueiros”, o baiano levantou a questão no blog que mantinha a respeito: “Já ouvi muitas vezes reclamarem de O Teu Cabelo Não Nega, mas de Feitiço da Vila não só não reclamam, como não querem que eu observe isso. E é uma observação histórica. Não é que Noel fosse um indivíduo especialmente racista. Mas é que a cultura mediana era, e até hoje é, racista. Tem um lado racista e classista no respeito a Noel. Ele marcou a entrada da classe média no samba, e documentou isso nessa música e em outras. Ele diz que a discussão se o samba vem do morro ou da cidade não importa, porque o samba nasce do coração. O que é uma opinião bem classe média. Muito boa, mas bem classe média”, disse Caetano, numa discussão promovida pelo jornal carioca O Globo quando da estreia do atual show de Teresa no Rio de Janeiro. “Na hora de cantar, a gente tem que passar a verdade no que se está cantando. Eu não conseguiria cantar essa música”, reitera Tereza, por telefone, do Rio.

Se é incomodada com Noel ter demarcado o samba do bairro carioca de Vila Isabel como mais depurado em relação aos outros de “feitiço” com “farofa”, numa clara alusão às religiões de matriz africana, Tereza não expande o sentimento em relação à totalidade da obra noelina. Afinal, esta é a força motora atual de seu canto. “Claro que não! Comecei a ouvir muito Noel, e tomei um susto quando percebi a atualidade das letras de Noel. A ironia com a aristocracia, a ironia de uma elite querendo estar em Paris com o povo morrendo de febre amarela, a hipocrisia e o desprezo das classes mais abastadas pelas outras”, ela diz, elogiando outra letra clássica. “O X do problema mesmo é um samba sobre uma mulher que não existia ainda. A mulher como protagonista do samba, fora Tia Ciata, que reunia todo mundo em sua casa, só veio a aparecer muito depois, com dona Ivone Lara. Ele realmente estava à frente do seu tempo, num tempo em que a mulher não se misturava”, continua. “O show acabou adquirindo uma conotação política que não tinha”.

No palco, a cantora desfia um rosário Noelino: Com que Roupa?,Feitio de Oração, Gago Apaixonado. Na temática, o Rio de Janeiro, a malandragem dos cabarés, as demarcações sociais dos corpos do homem e da mulher. E Deixa de ser convencida, uma rara parceria entre Noel Rosa, “o bacharel”, e Wilson Baptista, “o malandro”, que viviam se atacando através de letras. “Caetano diz que estou muito política”, ri.

“A minha praia sempre foi o samba de terreiro, não o samba de Carnaval. E o Noel fez o samba pós-folcórico. Mesmo na época em que tocava com o Bando dos Tangarás, fazia ainda o samba com muito batuque africano, muita embolada nordestina. Noel fez o partido alto de uma maneira elegante e de grande informalidade”, diz ela, confirmando o papel de pacificador de Noel no trânsito do samba dos Alpes periféricos para os salões elegantes onde hoje, não por acaso, Tereza Cristina se apresenta mundo afora. “No lugar em que ele estava depois (do sucesso estrondoso do samba) Com Que Roupa?, ele ganhou todos os salões, e era adorado pela gente que ele ironizava”.

ELEGANTE

Tereza, outra vez, deixa de lado a formação de um conjunto regional de samba com o qual se apresentou, nas noites da Lapa, por 18 anos desde que deixou de ser manicure para se converter na nova voz elegante do samba. No palco, ela é acompanhada apenas pelo violão não menos elegante de Carlinhos Sete Cordas, o mesmo com quem, também sob direção de Caetano, ela desfiou a obra de Cartola em shows que se estenderam do Brasil para a Europa, Estados Unidos e Ásia. “Além de já ter feito muito com o conjunto, com tamborim, cavaquinho, surdo, gostei muito do resultado com o Cartola. Carlinhos é um músico maravilhoso, toca com muita gente. Não sei por quanto tempo terei ele comigo. Tenho que aproveitar”, ri.

Noel é o segundo da trilogia de compositores clássicos que Tereza pretende gravar. O terceiro seria Nelson Cavaquinho. “Mas não sei se será ele ou um compositor da Portela. Estou por enquanto muito envolvida com Cartola”. Desde que estreou com a obra de Paulinho de Viola, Tereza, a seu modo e em sua latitude, contudo, vai fazendo o que Ella ou Sarah fizeram em sua América natal: construindo um rosário de álbuns exclusivamente dedicados a cada um dos gênios de sua pátria musical.
Tereza Cristina Canta Noel. Sexta, 20 de abril, 21, Teatro RioMar. Ingressos entre R$ 40 e R$ 160.

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