Carnaval 2017

Frevo nos tempos do politicamente incorreto

Capiba e Nelson Ferreira também foram politicamente incorretos

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 05/02/2017 às 10:56
foto/ Reprodução/Arquivo Capiba
Capiba e Nelson Ferreira também foram politicamente incorretos - FOTO: foto/ Reprodução/Arquivo Capiba
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"O teu cabelo não nega, mulata/por que és mulata na cor/mas como a cor não pega, mulata/mulata, eu quero o teu amor", versos de O Teu Cabelo Não Nega (1932), considerada a mais bela de todas as marchinhas carnavalescas, nos dias de hoje não seria gravada. Ela acaba de entrar no índex de um dos blocos cariocas que seguem a cartilha do politicamente correto, o que chega a ser uma incongruência, já que o Carnaval é uma festa para as exceções, onde vigora uma espécie de habeas corpus para se quebrar regras, que perde a validade na Quarta­Feira de Cinzas.

 A marchinha originalmente era um frevo dos irmãos Valença. Enviada em partitura para o Rio, acabou caindo nas mãos de Lamartine Babo, que mexeu na letra e acrescentou uma introdução antológica. Acabou num rumoroso caso nos tribunais, com ganho de causa para João e Raul Valença, que se tornaram parceiros involuntários do compositor carioca. Há 85 anos O Teu Cabelo Não Nega vem sendo tocada no Carnaval. Claro, é necessário contextualizar a canção no seu tempo.

 Até o advento do comportamento politicamente correto, para os autores de marchinhas carnavalescas perdia-­se o amigo mas não a piada, ou o trocadilho. Com o frevo não foi diferente. Mesmo os que atualmente horrorizam os praticantes do politicamente correto são crônicas do comportamento da sociedade do seu tempo.

 Há 50 anos, um dos maiores sucessos da folia pernambucana foi Pancadinhas de Amor, de René Barbosa, lançada por Walter Morales pelo selo Mocambo, da Rozenblit. A letra: "Você que leva a vida a passear/e a noite ainda vai ao quem me quer/ tá enganada/se está pensando que não se bate em mulher/ isso de se dizer que em mulher não se bate nem com flor/está errado, está errado/ elas precisam de pancadinhas de amor". Perdia-­se também a amiga, mas não a piada. O compositor René Barbosa escreveu uma "resposta" ao frevo Cala a Boca Menino, de Capiba, sucesso em 1966 ("Ouvi dizer que numa mulher/não se bate nem com uma flor").

 Obviamente, há muito do predomínio masculino numa sociedade em que "prendas domésticas", ou "do lar", eram a ocupação da grande maioria das mulheres. Aos maridos, condenados a ganhar o pão com o suor do rosto, desde a expulsão do paraíso, era permitido, com algumas restrições, relaxar durante o que se chamava então de tríduo do momesco. Muitos caiam na folia no sábado e só reapareciam na quarta­-feira, como canta Claudionor Germano, em O que é que vou dizer em casa, de Capiba:

 "O que é que eu vou dizer em casa/quando chegar Quarta­-Feira de Cinzas/o que é que vou dizer/o que é/com este cheirinho de mulher/Eu sei que você vai propor/de novo a separação/sem saber que tudo isso vai/ contrariar o seu coração/se um dia isso se der/você vai sofrer vai chorar/e a turma do café society/ vai ter muito o que falar", uma música que é exceção numa obra e permeada pelo lirismo, feito a de Capiba

 Quando apenas ela imperava no Carnaval, a música carnavalesca precisava ser simples e direta feito um jingle. As letras aproveitavam episódios recentes do noticiário, modismos, expressões e piadas em moda. Astrogildo Américo Branco Filho, ou Gildo Branco, foi um do autores de frevo de maior sucesso entre os surgidos nos anos 60, com frevos-­canção como A Lua Disse (1961), Cavalo Velho, Capim Novo (1968) ou Passei no Vestibular (1978). Era um mestre na comunicação fácil, mas um de seus sucessos não teria vez no Carnaval de agora, nem no Rio, nem no Recife, o frevo­canção Ela Sabe, que abre com os versos: "O homem tem que dar todo dia na mulher/pra ela ficar do jeitinho que ele quer/Ele pode nem saber porque está dando/mas ela sabe porque está apanhando". Ela Sabe tem co-­autoria do médico, e também ator, Reinaldo de Oliveira:

 "Ela concorreu ao concurso de música carnavalesca de 1967 e perdeu para Serpentina Partida, de Maximiano Campos e Artur Lima Cavalcanti. A gente fez como uma resposta ao frevo de Capiba Cala a Boca Menino", confirma Oliveira, que começou a fazer a música no Rio, na casa dos pais de sua mulher. Foi muito cantada na época, e não causou nenhuma polêmica". Ressalte-­se que a segunda parte de Ela Sabe trazia o duo das Irmãs Aimoré, rebatendo a primeira parte com os versos: "Sou obrigada a lhe censurar/pois a mulher foi feita pra se amar/fale quem quiser/eu não faço alarde/mas o homem que bate na mulher/é um covarde".

Mas o politicamente incorreto não tinha limites, e chegava a temas hoje impensáveis. Em 1960, um dos sucessos do Carnaval foi Operação Macaco, assinada por Sebastião Lopes e Nelson Ferreira, lançada pela Mocambo na voz de Nerise Paiva, cantora de grande popularidade em Pernambuco naquela década. Os dois aproveitavam uma profecia estapafúrdia preconizando que, na virada de 1959 para 1960, os negros iriam se transformar em macacos.

 O que hoje soa como piada de mau gosto, na época, ganhou espaço na imprensa e inspirou Sebastião Lopes a compor o frevo canção Operação Macaco, em parceria com Nelson Ferreira, autor do arranjo. Trecho da letra, inimaginável hoje, mas que foi um dos grandes sucesso do Carnaval de 1960: "Dizem que em 60/negro vai virar macaco/ora, vejam só, que grande confusão/se é verdade esta operação macaco/penca de banana vai custar um milhão". A música foi elogiada pela imprensa e virou uma das campeãs em execução no rádio.

Assim como as demais citadas, não causou celeuma, embora nunca seja incluída em antologias do maestro Nelson Ferreira. Com letra assim, Operação Macaco não entrava nem no repertório do bloco mais politicamente incorreto do país, o Quanta Ladeira. Lula Queiroga, que está fora do bloco, mas já foi um dos compositores das impagáveis paródias do QL reconhece que determinados assuntos não podem mais ser abordados: "Hoje, por exemplo, eu não cantaria mais O Teu Cabelo Não Nega, mas o Quanta Ladeira foi até onde deu pra ir".

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