PEC das Domésticas

A vida sem empregada doméstica

Especialistas defendem a nova legislação, que reforça o combate ao aviltamento da mulher e à herança escravagista que ainda persiste no País

Raissa Ebrahim
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Raissa Ebrahim
Publicado em 31/03/2013 às 6:04
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A mudança está nas estatísticas. Diferente de algumas décadas passadas, várias famílias brasileiras resolveram viver sem empregada doméstica. Dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que o percentual de trabalhadoras nos lares brasileiros caiu de 17,1%, em 2009, para 15,8%, em 2011.

Em números absolutos, significa que a quantidade de empregadas passou de 6,6 milhões para 6,1 milhões. A tendência é que essa queda se acentue ainda mais nos próximos anos. Os motivos? O surgimento de uma nova mentalidade, um novo cenário do mercado de trabalho – com novas e melhores oportunidades – e o encarecimento do serviço, devido, sobretudo, à aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) das Domésticas, na semana passada, que amplia os direitos da categoria.

Para quem não conta com uma empregada, dividir é a maneira mais eficiente de manter a casa em ordem. Ir para a ponta do lápis é essencial na hora da decisão. Igor Santos tem 27 anos, é gerente de projetos de software, trabalha o dia todo e ainda faz mestrado. É casado com Amanda Valente, 28, que é dentista e atende em quatro consultórios (Boa Viagem, Espinheiro, Casa Amarela e Boa Vista). Com um filho de quase quatro anos, Mateus, bastou fazer uma conta simples para perceber que valia mais a pena matriculá-lo numa escola integral do que pagar uma babá. 

“A mensalidade do colégio nos dá direito a três refeições diárias (lanche matinal, almoço e lanche da tarde), além de um esporte duas vezes por semana. Se fôssemos pagar a escola e uma babá, a conta sairia muito mais alta, principalmente com as últimas mudanças. Além do mais, na instituição Mateus fica sob a supervisão de adultos capacitados, tem aulas de inglês e informática, convive com outras crianças e divide a atenção das ‘tias’. Um mês depois de entrar no integral, já notávamos uma mudança incrível no desenvolvimento dele”, explica.

“Acordamos durante a semana às 6h. Deixo Amanda e Mateus de carro na escola. De lá, ela segue de ônibus para um dos consultórios e eu vou para a empresa, na Cidade Universitária. No fim do dia, voltamos todos juntos”, conta. A esposa mostra que em casa as tarefas são equacionadas: “Geralmente os pratos, as compras e a manutenção ficam com ele. Eu cuido da faxina e das roupas. Sempre orientamos Mateus a guardar os brinquedos depois de usá-los, para nos ajudar a manter a casa limpa e organizada por mais tempo”.

Lorena Maniçoba é enfermeira, separada, tem 23 anos e um filho de quatro anos. Nunca teve empregada. E fez isso por escolha. Prefere contar com a ajuda da família e dos amigos quando não pode ficar com a criança. “Na verdade nunca vi necessidade de ter uma babá, acho invasivo e, na minha opinião, não há ninguém melhor que eu mesma para cuidar do meu filho”, argumenta.

EXTERIOR - A escassez da mão de obra doméstica é recente no Brasil, mas, em locais mais desenvolvidos, como Europa e Estados Unidos, a realidade já é diferente há muito tempo. Por lá, pesa, além da questão cultural, o alto custo por um serviço de qualidade. Quem tem uma empregada é considerado rico. Não há dúvidas de que contexto é facilitado por creches acessíveis e de alto nível. A qualidade de vida é outra. Por aqui, a prática de não ter uma funcionária dentro de casa ainda é fortemente inibida pelo ritmo de vida e pela condição financeira. 

 

MUDANÇA HISTÓRICA E SOCIOLÓGICA - A promulgação da PEC das Domésticas não trará só mudanças trabalhistas. Ajudará também no avanço de uma questão que caminha a pessoas lentos: a divisão mais igualitária entre homens e mulheres dentro dos lares. A professora de psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e integrante do movimento feminista, Karla Galvão Adrião, chama atenção para um mascaramento da igualdade de gêneros nos últimos anos. 

“Da década de 1980 para cá, presenciamos uma intensificação da saída da mulher para o espaço público para trabalhar. Sua posição dentro de casa, porém, passou a ser ocupada por uma outra mulher, de classe social mais baixa. A reconfiguração dos lugares, portanto, não aconteceu por completo”, analisa. 

Karla questiona quanto vale o trabalho doméstico. “À atividade, não é dado o seu devido valor. Qualquer pessoa que a assuma, seja homem ou mulher, estará assumindo um trabalho desacreditado”, enfatiza. Para ilustrar, Karla compara o que se paga a uma diarista no Sul com o que se paga no Nordeste. “O preço aqui chega a ser metade do de lá”, atesta. 

“No Nordeste, ainda temos uma herança muito forte da casa grande e da senzala. Hoje menos, mas ainda é costume trazer uma menina do interior e ‘criá-la’ para que ela cresça como empregada, num relação muitas vezes análoga à de servidão. Criam-se laços afetivos, que são bons por um lado, quando a relação é de respeito, mas também inibem a questão do direito trabalhista, fortalecendo a desigualdade”, argumenta. Ela levanta outra questão: “Por que chamar a doméstica de ‘quase da família’ se muitas vezes ela come uma comida diferente e dorme no quartinho de trás?”.

Para a professora da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE Liana Lewis não foi à toa que o trabalho doméstico não tinha, até então, uma lei trabalhista consolidada. Para ela, isso revela muito sobre a sociedade brasileira. “É a maior caracterização do nosso regime colonial e escravocrata. Não é o impacto financeiro a grande questão. Há uma herança escravocrata que a classe média não quer admitir: a de querer impedir que os que estão expropriados de seus direitos tenham mais dignidade”, afirma. 

EXEMPLO - Antônio Cabral é aposentado. Maria José trabalha na casa dele há 40 anos. Há sete, ela sofreu um acidente vascular cerebral (AVC). Não chegou a se aposentar, mas ficou sem condições de trabalhar. Mesmo assim continua morando com seu Cabral e recebe dois salário mínimos. Já que tem condições, ele abriu uma poupança para ela para complementar a renda de Dona Maria quando ela se aposentar. “Faço isso para garantir o futuro dela. Funcionará como um FGTS. Todo mês deposito um pouco. É uma forma de agradecer a ajuda na criação dos meus filhos”. 

Assista aqui a série "Trabalho doméstico, trabalho decente", produzido pela ONU Mulheres (Unifem) no Brasil, Bolívia, Paraguai e Guatemala.

 

 

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