Apartheid

Abismo persiste na África do Sul 25 anos após libertação de Mandela

Incidentes recentes demonstram que as diferentes comunidades estão muito distantes da construção de uma memória coletiva comum sobre a história do regime segregacionista do apartheid

Da AFP
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Publicado em 10/02/2015 às 13:13
Foto: Marcelo Casall Jr./ Agência Brasil
Incidentes recentes demonstram que as diferentes comunidades estão muito distantes da construção de uma memória coletiva comum sobre a história do regime segregacionista do apartheid - FOTO: Foto: Marcelo Casall Jr./ Agência Brasil
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A África do Sul percorreu um longo caminho de reconciliação desde a libertação de Nelson Mandela em 1990, mas encontrar uma leitura da história comum entre negros e brancos permanece um desafio para a "Nação arco-íris".

No dia 11 de fevereiro, o país celebra os 25 anos da libertação de seu herói nacional, que se tornaria quatro anos depois o primeiro presidente democraticamente eleito por toda a população.

Mas incidentes recentes demonstram que as diferentes comunidades estão muito distantes da construção de uma memória coletiva comum sobre a história do regime segregacionista do apartheid, que reduziu os negros a sub-cidadãos durante décadas.

Verne Harris, diretor de pesquisa da Fundação Mandela, se inquieta: "O projeto de reconciliação está em perigo". Pode ser porque "os sul-africanos tentaram exorcizar seu passado muito rapidamente", com a célebre "Comissão da Verdade e Reconciliação" (TRC), presidida por Desmond Tutu, cujos trabalhos começaram em 1996.

A TRC fez muito ao tentar aproximar repressores e vítimas, concedendo aos primeiros - sob certas condições - uma anistia caso concordassem em confessar seus crimes. Mas algumas feridas ainda estão abertas.

A decisão, nos últimos dias, de renomear uma rua com o nome de Frederik Willem de Klerk, o último presidente do apartheid e co-Prêmio Nobel da Paz com Nelson Mandela, provocou críticas da comunidade negra.

De Klerk foi o homem que libertou Mandela em 1990 e desmantelou gradualmente as leis de segregação. Mas ele também era o chefe de Estado numa época em que os serviços especiais torturavam e matavam os militantes negros.

Em um discurso recente, de Klerk denunciou "o tom de confronto, novo e amargo, no discurso nacional" - a antítese, segundo ele, do ideal promovido por Mandela. Ele se referia a alguns dos discursos do atual presidente Jacob Zuma, que acusa regularmente o apartheid e os brancos de estarem na origem das dificuldades enfrentadas pelo país.

Em janeiro, o chefe de Estado provocou polêmica ao afirmar que "os problemas do país começaram" quando Jan van Riebeek, o primeiro colono holandês, colocou os pés na Cidade do Cabo, em 1652.

Um partido branco radical imediatamente ameaçou retaliar por "incitação ao ódio". E, mais inesperado, a ex-secretária particular de Nelson Mandela, Zelda la Grange, tuitou: "Estou CANSADA dos ataque regulares de Jacob Zuma contra o brancos".

La Grange, vista regularmente como um símbolo da possível coabitação entre brancos e negros, virou alvo de uma saraivada de críticas e acusações de racismo.

Crime contra a Humanidade

"Nós não alcançamos o objetivo final de nossa viagem, nós demos apenas o primeiro passo em uma longa e difícil estrada", admitiu Harris, da Fundação Mandela.

"A grande maioria dos sul-africanos vive em uma realidade ainda muito herdada do apartheid. Eles só concebem a raiva (...) as velhas divisões e os velhos cismas são mais marcados hoje em dia", considera.

De fato, apesar do surgimento de classes média e rica negras, os habitantes das periferias continuam a ser quase exclusivamente negros. E os belos bairros da Cidade do Cabo ou de Johanesburgo são habitados majoritariamente por brancos.

"As tensões raciais retornam à superfície, o que se tornou particularmente visível no último ano", constata Anele Mtwesi, pesquisadora da Fundação Helen Suzman.

"Após a TRC, acreditávamos que tudo entraria em ordem", admite, lamentando finalmente que sejam essencialmente as vítimas as que mais se esforçaram para perdoar, enquanto as indenizações não alcançaram o esperado. 

A pesquisadora apresenta um estudo de sua fundação que mostra que apenas 53% dos brancos sul-africanos consideram que o apartheid foi um crime contra a Humanidade.

Para Andre Keet, diretor do Instituto para a Reconciliação e a Justiça Social na Universidade Estadual Livre, o país "está muito concentrado no processo iniciado pela TRC, e não o suficiente naquilo que deveria ser um projeto político democrático para nos unificar".

Ele acrescenta que o sentimento de superioridade permanece extremamente vivo entre a população branca, mas que o atual discurso do poder não vai no sentido de uma reconciliação.

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