Era uma vez um país do futuro. Por Rogério Cezar de Cerqueira Leite

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jamildo

Publicado em 17/04/2021 às 9:17
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Na Folha de São Paulo

Tudo passa, diz o poeta, mas há um longo e infausto caminho a percorrer.

Era uma vez um Ulysses Guimarães, chegou a vez de um Davi Alcolumbre, de um Arthur Lira. Era uma vez um estadista, Oswaldo Aranha, chegou a vez do terraplanista Ernesto Araújo.

Era uma vez um empreendedor, Antônio Ermírio de Moraes, chegou a vez dos mascates Luciano Hang e Carlos Wizard.

Era uma vez um general de quatro estrelas, Ernesto Geisel, chegou a vez de um capitão Bolsonaro —imaginem só, um Bolsonaro.

Era uma vez um criador de estrelas, Antonio Candido, chegou a vez de um parteiro de energúmenos, Olavo de Carvalho.

Era uma vez uma protetora dos matos e dos passarinhos, Marina Silva, chegou a vez de um exterminador de borboletas, Ricardo Salles.

Era uma vez um empreendedor, Roberto Simonsen, chegou a vez de um politiqueiro, Paulo Skaf.

Era uma vez um programa de educação que criou 17 universidades com 31 campi, um programa de ensino profissional, outro de acesso financiado ao ensino superior e, enfim, um quarto de ensino fundamental, mas chegou a vez de armar o brasileiro, seis armas para cada cidadão, uma garrucha de cada lado da cintura, uma espingarda em cada ombro e uma metralhadora nas mãos —além, obviamente, de facões, sabres, espadas e um osso no nariz de cada um. Quanto mais covarde o cidadão, lembrem-se, de mais armas ele precisa.

Era uma vez um Plínio Sampaio, chegou a vez de um Flávio Bolsonaro.

Era uma vez um dom Paulo Evaristo Arns e seu rebanho de justiceiros, chegou a vez de um bispo, Edir Macedo, e seus US$ 2 bilhões. Era uma vez um Florestan Fernandes, chegou a vez de um Carlos Bolsonaro.

Era uma vez um defensor dos injustiçados, o advogado Sobral Pinto, que recusou uma cadeira no Supremo Tribunal Federal para que não pensassem que assumiria por ter defendido Juscelino Kubitschek, então presidente. Chegou a vez de um fascistoide ávido de palanque e de poder, Sergio Moro, que desavergonhadamente engoliu todos os ultrajes para chegar à Suprema Corte.

Era uma vez um Teotônio Vilela, chegou a vez de um Eduardo Bolsonaro, montando um porco.

Era uma vez um dos mais avançados sistemas de saúde do mundo, o SUS. Chegou a vez do “mimimi”, de uma “gripezinha” que já matou mais de 360 mil brasileiros e até outro dia estava sob a batuta de um coveiro, o general Eduardo Pazuello.

Era uma vez o movimento Diretas já. Chegou a vez das “rachadinhas”, das milícias, da mentira venal, do gabinete do ódio, das fake ?news palacianas, do elogio a torturadores.

Era uma vez um economista, Celso Furtado, chegou a vez de um especulador, Paulo Guedes.

Era uma vez uma guerreira, Maria da Conceição Tavares, chegou a vez de uma sirigaita que, do galho de uma goiabeira, distribui bênçãos gratuitas: Damares Alves.

Era uma vez um educador, Anísio Teixeira, chegou a vez de um psicopata, Abraham Weintraub.

Era uma vez um gentil, Betinho, que iluminou o Brasil inteiro com seu sofrimento. Chegou a vez de Fabrício Queiroz, que regou os bolsos da família Bolsonaro.

Era uma vez um país do futuro, chegou a vez da barbárie. Mas tudo passa, diz o poeta. Sim, tudo passa, mas deixa um longo e infausto caminho a percorrer, um longo caminho para recuperar a dignidade, a decência, a civilização.

Rogério Cezar de Cerqueira Leite é físico, professor emérito da Unicamp, membro do Conselho Editorial da Folha e presidente de honra do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM)

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