Democracia em crise? Por José Maria Nóbrega

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jamildo

Publicado em 26/05/2021 às 13:30
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Por José Maria Nóbrega – cientista político

A democracia como forma de governo está em crise?

Muitos são os cientistas políticos que afirmam estar em crise à democracia. Será que, realmente, a democracia está em crise ou a própria democracia é uma forma de governo em constante crise?

Mas, afinal, o que é democracia?

Como podemos conceituar ou definir um conceito tão complexo e polissêmico como o de democracia?

Existe algum conceito de democracia universal? Ou Universalmente aceito?

Para os liberais, democracia significa representação e limite de poder.

Para os socialistas, democracia é a vontade popular direta, sem representantes e/ou divisão de poder, é a máxima da tirania da maioria.

Contudo, a democracia é um conceito antigo, não é moderno como os conceitos de liberalismo e socialismo. Ela nasce numa discussão clássica das formas de governo no período antigo das histórias de Grécia e de Roma.

Para conceituar democracia na contemporaneidade, temos que fazer uma regressão às origens da democracia na modernidade, ou a sua reinvenção moderna.

A democracia como forma de governo, do governo do povo ou da maioria, é uma invenção da antiguidade, como dito. É na antiguidade clássica, principalmente nas tipologias gregas, que ela tem origem. A democracia direta e instável.

A democracia tal qual a conhecemos é uma experiência moderna e tem origem nos resultados promovidos pelas revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII. Primeiro, as revoluções burguesas promoveram o Estado liberal e os mecanismos de freios ao poder. Os limites do governo serão suas primeiras e principais características. A oligarquia competitiva. Depois, com a introdução do sufrágio universal (ou quase universal), os limites às tentações da tirania da maioria implícita na genética da democracia (tal qual definida por Rousseau e os marxistas) são instalados.

A democracia contemporânea é um “mix” de componentes liberais e eleitorais que produzem o Poder sob regras de limites e freios que impedem, ou devem impedir, a tirania. Esse “mix” geralmente vem a reboque do que Adam Przeworski chamou de “check list”: que são “eleições competitivas, direitos de expressão e associação assegurados por lei e Estado de direito”. Contudo, esse check list não é trivial e pode ser aumentado conforme a visão de democracia se aproxima de uma visão mais normativa desta.

São nos clássicos da modernidade que vamos ter o início da construção do conceito de democracia contemporânea. Quando os liberais, desconfiados da democracia (clássica), elaboram os princípios dos limites e separação dos poderes, sobretudo com a ascensão dos regimes republicanos. Evitar a tirania da maioria e a tendência autoritária dos governantes (Poder Executivo) foi o ponto nevrálgico da democracia moderna.

Os mecanismos de freios e contrapesos adotados pelos “pais” da constituição americana é um dos dispositivos mais importantes da democracia tal qual a conhecemos hoje. Controlar o príncipe é a forma pela qual a democracia incorporou esses mecanismos de controle. É necessário limitar o Executivo com o controle pelo Legislativo e deste pelo Judiciário, um poder judiciário independente do poder político. É claro que a fórmula de equilíbrio não é das mais claras e sempre há tendências a crises entre os poderes.

Retomando o check list de Przeworski, é fundamental entendermos a democracia como uma lista de procedimentos. Contudo, diferente do pragmatismo de Schumpeter e de Downs, o sucesso do método democrático, ou poliárquico conforme Dahl, não é tão simples como se imagina que seja. A história, o path dependence, os entraves institucionais, sobretudo em novas poliarquias que passaram por regimes autoritários, a exemplo de muitos países da América Latina, são obstáculos que comprometem à consolidação democrática, a dificultando.

Entraves autoritários, veto players do antigo regime, nas instituições de representação impedem o avanço dos regimes políticos para democracias consolidadas.

Fraco componente liberal, falta de acomodação entre as elites políticas (de todos os espectros ideológicos) em torno das regras do jogo da democracia, oposição destrutiva (ou perseguição e impedimentos à oposição), corrupção, impunidade, criminalidade, judiciário ativista, tudo isso pode implicar em regimes de frágeis democracias, ou semidemocracias conforme o termo definido por Mainwaring et al (2001).

A maioria dos cientistas políticos adota a definição eleitoral, ou submínima, da democracia. Como em Przeworski (2019), adotam a seguinte definição: “democracia é um arranjo político no qual as pessoas escolhem governos por meio de eleições e têm uma razoável possibilidade de remover governos de que não gostem (...). Democracia é simplesmente um sistema no qual ocupantes do governo perdem eleições e vão embora quando perdem”.

Essa “razoável possibilidade de remover governos que não gostem” não fica clara em sua essência, sendo assim, retórica. Przeworski (2019) continua na construção do seu conceito afirmando que ameaças às eleições que as tornam não competitivas “podem incluir violações das precondições para eleições competitivas enumeradas por Dahl” (p. 29), mas o seu foco é no processo eleitoral. Nada diz a respeito do Estado de direito além dos direitos que venham garantir eleições livres e limpas.

Pode existir eleições livres e limpas, mas com graves violações ao Estado de direito como vemos, por exemplo, nas poliarquias latino-americanas.

Para a América Latina, o conceito construído por Przeworski é insuficiente. As crises na região vão muito além das instituições que passam pelo crivo eleitoral. A não-consolidação da democracia na região não poder ser vista pelo conceito submínimo do eleitoralismo.

Os dispositivos de freios e contrapesos não são tão firmes quanto parece ao olhar desatento do observador formal. Por isso, mostra-se fundamental construir o conceito de democracia procedimental acrescentando a qualidade do Estado de direito (muito além dos direitos de associação e de expressão rudimentares da teoria procedimental schumpeteriana, dahlsiana, downsiana e przeworskiana).

Uma definição procedimental da democracia precisa inserir, além dos procedimentos eleitorais encontrados na literatura, as condições do componente liberal do Estado de direito como o construído por O´Donnell (1998 e 1999), mas de forma mais pragmática. Substituindo conceitos abstratos por indicadores mensuráveis.

Democracia sem Estado de direito, ou com Estado de direito muito limitado, está condicionada a constante crise de legitimidade e de governabilidade. Muitas das democracias latino-americanas e do leste europeu são, na verdade, regimes híbridos promotores de eleições.

Alguns países são regimes semiautoritários conforme a teoria desenvolvida por Ottaway (2003), a exemplo da Rússia, do Egito e da Venezuela. Promovem eleições, mas o componente liberal é praticamente inexistente e nesses países impera atividades fora da lei, antirrepublicanas, criminosas, com altíssimo nível de impunidade e com o alto escalão dos governos sem ser alcançado pela regra de igualdade perante às leis tão cara ao componente liberal das democracias.

Dito tudo isto, chego à conclusão que a democracia na maior parte dos países que adotaram eleições minimamente competitivas está em crise não pelas instituições eleitorais per si (sistema eleitoral, partidos políticos, parlamento), mas pela lacuna do Estado de direito que está na base do sucesso das democracias mais avançadas. Estas que suportam suas intempéries de forma mais consistente, diferente das semidemocracias e dos regimes semiautoritários em constante crise.

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