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Os Exércitos brasileiros (ou: A reforma necessária). Por Roberto Numeriano

Há um Exército histórico, fundacional, que é o das duas Batalhas dos Guararapes com a bravura e o heroísmo dos combatentes contra os invasores batavos. Há o Exército dos porões da ditadura de 1964

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jamildo

Publicado em 10/07/2021 às 16:30 | Atualizado em 10/07/2021 às 17:08
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Por Roberto Numeriano, em artigo enviado ao blog

Há um duplo mito antigo cultivado com fé canina nas hostes castrenses do Brasil. É o de que o Exército Brasileiro é uma força coesa nos termos da hierarquia e disciplina, além de fortemente profissional para cumprir sua função constitucional de defesa do território. Não é uma coisa, nem outra.

No primeiro caso porque, há décadas, as forças armadas (e o Exército em particular) se imiscuem abusiva e autoritariamente na política, com os desastres os quais todos os democratas conhecem. No segundo caso porque não há nada mais desprotegido do que as fronteiras brasileiras, enquanto a maior parte da tropa se aboleta no litoral e grandes cidades.

Na verdade, o que explica esse duplo mito é que temos no Brasil vários Exércitos, embora, na aparência, os seus quadros marchem em garbosa ordem unida sob comando uníssono. Há um Exército histórico, fundacional, que é o das duas Batalhas dos Guararapes com a bravura e o heroísmo dos combatentes contra os invasores batavos. Há o do grande Marechal Rondon, humanista e grande oficial cujo lema, nas suas jornadas sertanejas, era: “Morrer, se preciso for. Matar, nunca”. Há o Exército dos porões da ditadura de 1964, sanguinário tanto quanto o Exército racista e genocida de Canudos. Há o Exército politiqueiro e golpista, sempre a ameaçar a ordem constitucional.

Como se vê, são muitos Exércitos...

A nota oficial do Ministério da Defesa e do comando das outras três forças, divulgada dia 07 de julho, é, tipicamente e na inspiração, a do Exército do massacre de Canudos. Ela por si só revela a necessidade de uma reforma geral e profunda na formação doutrinária, científica e moral nos currículos de ensino médio das escolas básicas das três forças (Escola Preparatória de Cadetes do Exército, Escola Preparatória de Cadetes do Ar e Colégio Naval), e de ensino superior (Academia Militar das Agulhas Negras, Academia da Força Aérea e Escola Naval).

Parece-nos, ao lê-la nas linhas e entrelinhas, que os conceitos de liberdade, democracia, disciplina, hierarquia, moralidade e soberania civil são desconhecidos pelos mais altos comandantes militares. Isso se dá justamente porque seus currículos estão atravessados por um eixo politicamente autoritário e organicamente engessado nos termos de um insulamento burocrático de elite estatal que se arvora numa espécie de 4º Poder.

Seus currículos, direta e indiretamente, postulam que os militares devem tutelar o poder civil. Se isso não pode ocorrer nem em tempos de guerra, quanto mais em tempos de paz! Tenho certeza que naqueles centros de estudo, sustentados pelos impostos do contribuinte civil, os conceitos político-ideológicos, os valores democráticos, a questão dos direitos humanos em suas variadas formas e conexões, a doutrina militar, a geopolítica, a liberdade, a autodeterminação dos povos, o socialismo, o capitalismo etc, devem padecer de leituras enviesadas / autoritárias, anticientíficas e reducionistas, numa medida delirante similar à da nota oficial.

Autoritária e ilegal, essa nota ameaça o Poder Legislativo e o regime democrático sob o falso pretexto de... defender as instituições democráticas. Trata-se, esse paradoxo, do maior sinal de um autoconceito institucional perverso e pervertido, cultivado secularmente pela mentalidade militar. Mentalidade aferrada no discurso dicotômico da Guerra Fria, e não por acaso submissa à doutrina militar dos Estados Unidos quando se refere aos desafios geopolíticos recentes ou projetados para as próximas cinco décadas.

Como uma casta acima do bem e do mal, os militares erigem-se em guardiões da democracia, quando esta tem por guardião exclusivo o poder civil, soberano e inviolável em suas prerrogativas constitucionais. As armas que as forças portam são fornecidas pelos civis, e somente por decisão destes podem ser empunhadas, nos termos do que dispõe a Constituição Federal de 1988.

O fato em si de militar ser manchete no mundo político (algo já secular), já é uma prova robusta da necessidade de reformar as forças armadas. Na mesma linha dessa nota, não nos surpreendeu a gravíssima e covarde decisão de não punir o general Pazuello ao discursar em palanque. Nós a esperávamos, pois a história nacional não nos dá o direito de ser ingênuo. E assim sustentamos porque, de fato, onde está essa tal disciplina e hierarquia, se nos últimos anos vários generais (até da ativa) vivem de arreganhos fascistas, ameaçando até diretamente o Poder Judiciário?

A rigor, o contribuinte que paga seus altos salários e imensos privilégios não autoriza às Forças Armadas meterem-se na política, sobretudo porque, dentre os tantos Exércitos, é justamente aquele de formação e doutrina autoritária (sedento pelo poder de mando civil), quem sai dos porões, pomposo na farda e sempre incompetente para gerir a máquina pública civil. Não é o de Rondon, nem o de Guararapes.

Nesse ambiente de vários exércitos e demais forças, quem enverga a farda dos bravos de Guararapes e do grande Marechal Rondon? Quem está com os porões de 1964 e do genocídio de Canudos?

Roberto Numeriano apresenta-se como 2º Tenente do Exército, jornalista, professor e pós-doutor em Ciência Política pela Universidade Nova de Lisboa (UNL).


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