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Suspeitas sobem a rampa. Por Ricardo Leitão

Com seu prazo de trabalho estendido até novembro e, até agora, cinco milhões de documentos para analisar, a CPI no momento norteia suas investigações por uma gravíssima hipótese: sob os olhares complacentes do general Eduardo Pazuello, se estruturam no Ministério dois poderosos esquemas (ou quadrilhas) para atacar as verbas públicas.

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Jamildo Melo

Publicado em 19/07/2021 às 19:48
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Por Ricardo Leitão, em artigo enviado ao blog

Um dia após o fim da primeira etapa da CPI da Covid do Senado, as suspeitas de corrupção na compra de vacinas subiram a rampa do Palácio do Planalto. Um vídeo apresenta o general Eduardo Pazuello, então ministro da Saúde, negociando contrato para aquisição de 30 milhões de doses da vacina chinesa Coronavac, por 28 dólares a dose. É quase o triplo do valor da dose da mesma Coronavac comprada pelo Ministério ao Instituto Butantan, de São Paulo.

Pazuello se reuniu, no Ministério da Saúde, em 11 de março passado, com representantes da empresa World Brands Distribuidora, sediada em Santa Catarina, suposta representante no Brasil do laboratório chinês Sinovac, que produz a Coronavac. Foi uma surpresa: a exclusividade para representar o Sinovac e produzir a Coronavac no país é do Butantan, que em nenhum momento foi comunicado das tratativas paralelas de Pazuello.

Os representantes da World Brands foram levados ao general pelo então secretário-executivo do Ministério, coronel Élcio Franco. Ao serem exonerados de suas cargos, com a posse do novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, Pazuello e Franco – já sob suspeição da CPI da Covid – foram promovidos a assessores de nível superior por Jair Bolsonaro. Trabalham agora no Palácio do Planalto e serão reinqueridos pela comissão de inquérito do Senado. O coronel terá de explicar por que intermediou o contato dos vendedores de Santa Catarina com o general. E o general por que negociou um preço por dose três vezes maior do que o Ministério contratara com o Instituto Butantan.

Para alarme dos bolsonaristas, o episódio aproximou ainda mais o presidente da República do escândalo bilionário da aquisição de imunizantes contra a pandemia. Em três meses, a CPI ouviu servidores e ex-diretores do Ministério, e presidentes, dirigentes e vendedores de empresas de corretagem de vacinas. Todos apresentaram um traço comum: são inocentes, os culpados são os outros. Entre os depoimentos mais reveladores, os de Luis Ricardo Miranda, servidor no Ministério da Saúde; Roberto Ferreira Dias, ex-diretor de Logística da pasta; Emanuela Medrades, diretora da Precisa Medicamentos; Luiz Paulo Dominguetti, vendedor da Davati Medical Supply, e Cristiano Carvalho, representante da Davati no Brasil (a empresa é sediada no Texas, EUA).

Excluindo-se os depoimentos técnicos, como os dos pesquisadores, os demais formam uma sucessão de omissões, esquecimentos, falsos testemunhos e mentiras – a ponto de Roberto Ferreira Dias ter sido preso em flagrante durante uma sessão, por perjúrio.

Deu de tudo. O ex-diretor Dias, este que foi preso, disse que estava bebendo um chopp, em um restaurante em Brasília, quando se aproximaram o tenente-coronel Marcelo Blanco, ex-assessor do Ministério, e Luiz Paulo Dominguetti, corretor da Davati. Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais, Dominguetti informou que tinha 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca para vender. Dias retrucou que o Ministério poderia comprar, mediante uma ‘comissão’ (eufemismo para propina) de um dólar por dose. Ou seja, 400 milhões de dólares, equivalentes a cerca de R$ 22 bilhões.

Na sessão da CPI, o ex-diretor confirmou o “encontro casual” com o cabo da PM, mas negou veemente qualquer oferta de propina. Mas não soube explicar gravações de diálogos seus, por celular, com Cristiano Carvalho, de posse da CPI, em que tenta marcar encontro com o representante da Davati no Brasil.

Emanuela Medrades escapou de ser presa por perjúrio, no entanto seguiu o rumo de Dias. Diretora da Precisa Medicamentos, ela assinou contrato com o Ministério da Saúde para fornecimento de 20 milhões de doses da vacina Covaxin, produzida pelo laboratório indiano Barat Biotech. Memória oficial de reunião no Ministério – na qual Medrades estava presente – fixou o valor de cada dose em 10 dólares. Entretanto, quando o contrato de R$ 1,6 bilhão foi assinado, o preço de cada dose subiu para 15 dólares, valor igualmente registrado na primeira fatura enviada pela Precisa ao Ministério, em 18 de março – de acordo com os depoimento dos servidores da pasta à CPI.

Emanuela Medrado, do contrário, assegura que a primeira fatura só foi enviada ao Ministério em 22 de março. A diferença do dia – se 18 ou 22 – é decisiva para a investigação da CPI. Em 20 de março, um sábado, Jair Bolsonaro recebeu no Palácio da Alvorada o servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda, acompanhado de seu irmão, o deputado federal Luis Miranda, da base parlamentar bolsonarista. Os dois denunciaram ao presidente pressão de superiores para antecipar pagamentos à Precisa, o que não previa o contrato. Segundo os Miranda, Bolsonaro examinou os documentos que lhe foram entregues – entre eles cópia da primeira fatura da Precisa – e comentou que “esse rolo é coisa do Ricardo Barros”. Afirmou então que iria mandar a Polícia Federal investigar.

Ricardo Barros é o líder do governo na Câmara dos Deputados, distinção de confiança política que continuava a exercer. A Polícia Federal não foi mobilizada e, em consequência, o presidente está sendo investigado por prevaricação. Surgem questões: se o Ministério da Saúde só recebeu a fatura da Precisa em 22 de março, os irmãos Miranda teriam entregue a Bolsonaro uma fatura falsificada em 20 de março? Por que agiriam assim, se o deputado Luis Miranda era aliado político do bolsonarismo?

Aos senadores da CPI, Emanuela Medrades se disse pronta a se submeter a uma acareação com os irmãos Miranda para comprovar que a fatura válida é a do dia 22. Em seguida, perdeu a memória. Assegurou não se lembrar da reunião no Ministério, à qual compareceu, quando foi fixado o valor de 10 dólares por dose da vacina Covaxin; disse desconhecer os motivos por que o preço do contrato subiu para 15 dólares; também não eram se seu conhecimento os termos do contrato da Precisa com o Ministério da Saúde – apesar de signatária em ambos.

Com seu prazo de trabalho estendido até novembro e, até agora, cinco milhões de documentos para analisar, a CPI no momento norteia suas investigações por uma gravíssima hipótese: sob os olhares complacentes do general Eduardo Pazuello, se estruturam no Ministério dois poderosos esquemas (ou quadrilhas) para atacar as verbas públicas. Um vinculado ao deputado Ricardo Barros, chefiado pelo ex-diretor de Logística Roberto Dias Ferreira; o outro, aliado aos bolsonaristas, sob o comando do ex-secretário executivo coronel Élcio Franco.

Em agosto, correntes caudalosas passarão debaixo das pontes. Melhor dizendo: passarão tsunamis debaixo das rampas.

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