7 de setembro: mito fundador e o sequestro da história
Por Daniel Carvalho de Paula, em artigo enviado ao blog
Nações são inventadas. Isso não significa que fatos históricos conhecidos da maioria não tenham acontecido, mas quer dizer que a seleção que se fez deles, atribuição de significados e relevância, são construções de pessoas e instituições. Não é à toa que se fundou em 1838, na capital do Império, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com a missão de consolidar por escrito a biografia da nação e seus limites territoriais em disputa. No centenário da Independência do Brasil, coube a Taunay e ao Museu Paulista constituir o panteão nacional. Era necessário dizer quem eram nossos heróis e em que dia do ano seriam celebrados. Todo país tem seus mitos de origem estabelecidos.
O 7 de setembro, como conhecemos, esconde a existência de outros projetos e arranjos políticos que concorreram entre si. Essas várias linhas de ação visavam emplacar uma solução para o Brasil em meio à crise engendrada pelas revoluções liberais ibéricas, nas primeiras duas décadas do século XIX. Revoluções que reivindicaram a promulgação de Constituições, corpo de leis gerais que a todos abarcasse. Documento que hoje é escarnecido por facções irresponsáveis como se não tivesse sido fundado na concepção liberal de soberania popular, contra possíveis atos de tirania.
Um grito dado às margens plácidas do Ipiranga é o mito fundador da nacionalidade brasileira. D. Pedro I, a cavalo, guiando-nos à emancipação. A memória costurada em torno da Independência apresenta esse processo como algo inescapável, uma espécie de destino manifesto do Brasil e seu povo rumo à liberdade. Duas grandes tendências interpretativas se evidenciam: ou tudo não passou de um acordo entre elites, ou aquilo representou o patriotismo de grandes brasileiros contra a tirania lusitana. Esse dualismo acaba por torcer a narrativa para dobrá-la aos pés de visões de mundo que se digladiam, reforçando a surdez e a miopia, nos negando uma visão mais crítica e polifônica da história.
Dado que, de forma geral, necessitamos de manifestações concretas daquilo que queremos crer, parece necessário e, talvez até legítimo, que datas e nomes sejam destacados do imenso tecido do passado para darem corpo palpável à nação imaginada. O perigo está sempre na usurpação desses símbolos feita em nome de atentados criminosos às instituições democráticas, penosamente estabelecidas. A polarização política em que estamos metidos é promovida por aqueles que precisam semear o sectarismo, pois não possuem o fôlego de um projeto de país, apenas a bile de um projeto de poder.
Saber mais sobre a construção histórica que nos trouxe ao 7 de setembro não deve estar a serviço de eliminar feriados do calendário. Não se trata de mera iconoclastia, mas sim de nos prevenirmos dos iconólatras, adoradores de símbolos, que pretendem sequestrar a história e, sob tortura, fazê-la repetir seu mantra antidemocrático, travestido de amor à nação.
Daniel Carvalho de Paula é professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bacharel e Licenciado em História, Mestre e Doutorando em História Social, pela USP.