Mundo do direito

A pandemia e o princípio da vedação ao retrocesso

Estamos prontos para digerir nossos próprios excessos?

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Jamildo Melo

Publicado em 13/10/2021 às 15:42 | Atualizado em 13/10/2021 às 15:54
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Em artigo enviado ao Blog de Jamildo, o promotor de Justiça no estado de Alagoas e membro do MPD Paulo Henrique Carvalho Prado faz uma analogia sobre o nazismo, a criação dos direitos humanos depois da Segunda Guerra Mundial e o ataque a esses direitos durante a pandemia.

Por Paulo Henrique Carvalho Prado

Não devemos dar, novamente, lições ao inferno. [i]

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, no livro Modernidade e Holocausto, nos demonstra que o holocausto nazista não foi efeito de uma barbárie pré-moderna, mas sim da própria modernidade. [ii]

Somos acostumados a achar que o estranho são os outros. No caso relatado por Bauman, que tamanha desumanidade não poderia ter sido cometida pela própria geração que teve por dever digerir seus próprios excessos.

Reconhecida a barbárie nazista, um sistema global de garantias dos direitos humanos fora criado, pautado, por entre outros princípios, pela vedação ao retrocesso, ou seja, reconhecido um direito fundamental não seria permitido o seu retrocesso, apenas o avanço na sua proteção.

A humanidade em 2020 se deparou com a oportunidade de demonstrar uma resposta sinergética dos Estados, dos Organismos Supranacionais e da própria sociedade ao grave problema da pandemia do COVID-19, resposta que deveria ser prismada nos direitos à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana.

O que vimos e vemos, porém, são algumas nações mergulhadas em fake news, com panaceias rasputinianas à pandemia, o pronunciamento com pouca ressonância dos Organismos Supranacionais pela homogenização dos recursos no combate ao COVID-19 e a sociedade no seu instinto de autodefesa.

Nesse caldeirão perdidas estão as nações periféricas. Enquanto as nações centrais iniciam rebaixamento do rigor das medidas sanitárias, incentivando a retomada das atividades como turismo, países como Tanzania, Burkina Faso e Madagascar possuem índices de vacinação que não chegam a 1% da população, segundo o portal de estatística Our Word in Date. [iii]

A pandemia veio mostrar o quão frágil ainda estamos na defesa dos direitos à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana em escala global e principalmente: como nas grandes encruzilhadas, como na pandemia do COVID-19, continuamos escolhendo os caminhos tortuosos como o do início do século passado, escanteado o princípio da vedação ao retrocesso das conquistas em direitos humanos.

Algumas nações africanas possuem sua linha de frente, idosos e portadores de comorbidade sem receber sequer a primeira dose de imunizante e isso deveria trazer duras reflexões pela comunidade internacional, porém o que se vê é uma corrida pela terceira dose nas nações centrais.

A tentativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), por meio do consórcio Covax Facility, em levar a vacina para os países de baixa renda, foi praticamente barrada pela reserva de doses feita pelos países ricos, bem maior que o necessário para seus habitantes.

Se não bastasse a carência de insumo, as nações mais pobres possuem outras dificuldades: (…) e o problema da vacinação é muito mais complexo. Um programa de imunização tem toda uma logística por trás. E essa logística tem gastos. Por isso, muitos desses 55 países tiveram que devolver vacinas porque não conseguiram aplicá-las por falta de dinheiro para sustentar as campanhas. (...) É por isso que a vacinação na África é muito lenta, não só por falta de imunizantes, mas por toda a cadeia de infraestrutura e logística. [iv]

Concordamos, integralmente, com o discurso do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, na abertura dos debates da 76ª sessão da Assembleia Geral, em 21 de setembro de 2021: "Por um lado, vemos as vacinas desenvolvidas em tempo recorde - uma vitória da ciência e da engenhosidade humana. Por outro lado, vemos esse triunfo desfeito pela tragédia da falta de vontade política, do egoísmo e da desconfiança. Um superávit em alguns países. Prateleiras vazias em outros. A maioria do mundo mais rico foi vacinada. Mais de 90 por cento dos africanos ainda esperam pela primeira dose. Esta é uma acusação moral ao estado de nosso mundo. É uma obscenidade. Passamos no teste de ciências. Mas estamos tirando a pior nota em Ética". [v]

A pandemia do COVID-19 estampa a nossa barbárie, a barbárie da sociedade pós-moderna, que, mesmo após a criação de um sistema de garantias de direitos à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana, preferiu guiar-se marginalmente ao princípio da vedação ao retrocesso.

O preço pode ser altíssimo, novas cepas podem surgir pela falta de gerenciamento global da pandemia, a falta de vacinas nas nações periféricas transcende as questões humanitárias locais, podendo a circulação e recirculação do vírus gerar novas variantes cujas vacinas poderão não mais trazer eficácia.

Olhando a obra de Zygmunt Bauman, fazendo um paralelo à resposta da sociedade pós-moderna à pandemia do COVID-19 e a resposta da sociedade moderna no pós-guerra, podemos afirmar: fácil olharmos para o passado e enxergarmos o quão levianas foram as justificavas das gerações passadas nas suas ações extremas. O difícil será, no futuro bem próximo, para a nossa geração, digerir que somos nós os causadores dos excessos na Pandemia do COVID-19, por não respeitarmos a vedação ao retrocesso dos direitos humanos.

Estamos prontos para digerir nossos próprios excessos?


PAULO HENRIQUE CARVALHO PRADO
Promotor de Justiça no Estado de Alagoas
Graduado em Direito pela Universidade Mackenzie
Especialista em Processo Civil pela Universidade de São Paulo
Associado do MPD - Movimento do Ministério Público Democrático

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