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'Saudades', por José Paulo Cavalcanti Filho.

Leia a coluna desta sexta-feira, 5 de novembro, de José Paulo Cavalcanti Filho

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Augusto Tenório

Publicado em 05/11/2021 às 7:58
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Por José Paulo Cavalcanti Filho

Virgulino Ferreira da Silva usava patente de capitão, isso todo mundo sabe. Segundo lenda, outorgada pelo Padre Cícero do Juazeiro. Em 1926. E não por acaso, dado já ser então um estrategista respeitado. Capaz de infundir tanta confiança nos que com ele estavam que seu pessoal pelejava cantando. Duas das táticas de guerrilha que usou ficaram, inclusive, famosas. Primeiro, nunca deixava mortos do cangaço no campo de batalha. Carregando seus corpos, durante dias, até enterrá-los em locais ermos. As volantes, depois dos tiroteios, encontravam no chão corpos apenas da polícia. Tendo a sensação de que combatiam fantasmas. Segundo, a novos membros do bando, ele dava nome dos que acabavam de morrer. Azulão foram cinco. Candeeiro, Chá Preto, Moderno e Mão de Gréia, pelo menos dois. Baliza dois (e mais um, no bando de José Padre). Quem duvidar pergunte a Fred Pernambucano, que é professor na matéria. Tudo fazendo com que se disseminasse, no imaginário coletivo, a lenda de que ele e seus homens tinham o corpo fechado. De serem imortais.

Pensei nele na data em que tradicionalmente trocamos as angústias do presente e as incertezas do futuro por lembranças do passado. Pode-se aproveitar o dia de finados, como o desse terça passada, para falar por exemplo de crendices e superstições portuguesas ainda tão presentes, sobretudo na gente simples do povo. Como a de que as almas dos afogados passeiam sobre as águas do mar e dos açudes em que se afogaram; ou visitam lugares em que viviam ou foram assassinados; ou de que, nas horas abertas, vagam pelos cemitérios.

Cadáver, para os romanos, era a carne dada aos vermes. Uma palavra formada pelas três sílabas iniciais da expressão romana caro data vermibus (carne dada aos vermes). Paulo Rónai diz que a versão é "fantasiosa". Quem sabe? Segundo crendice popular, o cadáver passa à eternidade sem as riquezas terrestres. E, por isso, é ainda hoje usual arrancar do morto seus dentes de ouro (para que a alma não retorne, depois, impedida de subir aos céus).

Pela mesma razão, até a primeira Grande Guerra, militares tinham os botões dourados das fardas retirados, na hora do enterro. A tradição portuguesa, por outro lado, manda pôr na boca do morto uma moeda de prata, como que pagando algum tipo de pedágio para a eternidade. Caronte, barqueiro dos infernos, exigia óbolos que, quando não pagos, condenavam o morto a vagar, em suas barcas, por cem anos de solidão. Bom lembrar que mãos soltas atrapalham a subida, razão pela qual é conveniente amarrar pulsos com terços ou rosários. Já pés devem estar sempre voltados para a porta da rua, inclusive no percurso em direção ao túmulo, uma posição que é o inverso daquela com que se entra no mundo. Para dar sorte. Já os poetas, que segundo Pessoa "vêem em tudo o que lá não está" (Caeiro, Ficções de Interlúdio), conseguem enxergar beleza nisso. "Um cadáver não é trono demolido,/ Nem roto altar,/ Apenas prisão deserta" (Duelo), palavras de Salvador Diaz Miron.

Finados vem de fim, do latim finis; e, literalmente, quer dizer acabado, findo, finito. Mas está igualmente ligado ao sentido de perfeição; sendo, assim, também generalizadamente utilizado – finalidade, fino, refinamento. Com o que a ideia de perda acaba se convertendo, naturalmente, em saudade, impregnando-se de eternidade. Lembro mestre Drummond (Memória) dizendo que “As coisas tangíveis,/ Tornam-se insensíveis,/ Na palma da mão,/ Mas as coisas findas/ Muito mais que lindas,/ Essas ficarão”. Que finados é, sobretudo, um momento de confortadora intimidade. Das coisas que ficaram. Como se a mão misteriosa do destino preservasse, em nossas memórias, sobretudo os momentos bons de nossos mortos.

P.S. RELATÓRIOS. Aproveito e melhor explico meu pobre pensar sobre o dito na última coluna, sexta passada (espremida pela exigência, no jornal, do limite de 2.350 toques). Sobre duas questões, apenas. É o seguinte:

1. Tudo o que foi investigado, na CPI, cumpre apurar. Com zelo. Doa a quem doer. Para que todos assumam as responsabilidades que lhes cabem. Inclusive penais. Nenhuma dúvida, quanto a isso.

2. Entre as investigações que deveriam ser feitas pela CPI, havia episódios de corrupção. E a casa tem 81 senadores. Por isso, com tantos membros sobre os quais não pesa nenhuma suspeita, é (pelo menos) constrangedora a escolha de um réu por corrupção (ele, sua mulher e 3 irmãos), para ser Presidente. E quem é réu em quase 10 processos, também por corrupção, para ser relator. Como dizia Shakespeare (em O Mercador de Veneza), “Ah, se as propriedades, títulos e cargos/ Não fossem fruto da corrupção.../ Quantos, que comandam, não estariam entre os comandados?”. How many be commanded, that command? É isso.

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