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'Um conto de natal', por José Paulo Cavalcanti Filho

Leia a coluna de José Paulo Cavalcanti Filho desta sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

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Augusto Tenório

Publicado em 24/12/2021 às 7:00
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Por José Paulo Cavalcanti Filho ([email protected])

Fernando Pessoa, no Cancioneiro, escreveu poema (Natal) em que dizia “Nasce um Deus. Outros morrem... Temos agora outra Eternidade, / E era sempre melhor o que passou”. Seguindo nessa trilha, recordo uma eternidade pessoal que se deu em Natal do passado. E começo dizendo que, também naquele ano, visitei lugares da infância. Com “Saudades de mim” (título do livro de António Ferro). Faço isso todo 24 de dezembro. E tinha realizado sonho antigo, que era ter órgão de 3 teclados, com pedais para os graves, comprado na Rua da Concórdia. Foi amor à primeira vista. Já voltando, reproduzi roteiro que fazia todos os dias. O ponto do casal ficava numa esquina da Av. Conselheiro Aguiar, por trás do Acaiaca. Onde parava para comprar milho assado. Assim foi, também, naquele Natal. Problema é que, junto ao fogareiro, estava só a mulher. E João, encostado no muro, chorava como um desesperado.

– Maria, que está acontecendo com seu marido?

 – É que ele prometeu a nosso filho uma bicicleta usada, doutor. Foi ao Recife hoje, comprar. Só que, no ônibus, um ladrão levou seu dinheiro. Voltou a pé, sem ter nem como pagar a passagem de volta. E não sabe como vai dizer isso ao menino.

 Pensei na vida. Eu, chegando em casa com um órgão. E, João, de mãos vazias. Algo, no mundo, estava fora do lugar. E fiz a única coisa que poderia fazer. Ou deveria. Abri a porta do carro e disse

 – João, entre aqui.

 – Vamos para onde?, doutor.

 – Entre, por favor.

Adiante, chegamos nas Lojas Verão. Com um extenso mostruário de bicicletas, logo na entrada, embandeiradas para chamar a atenção dos compradores. Saltamos.

– A bicicleta que ia comprar era como?, amigo.

– Essa aqui.

– Então monte nela e vá embora.

João, assustado, pareceu não compreender a cena. E o vendedor da loja mais ainda, ante o risco de perder sua mercadoria.

– Suba na bicicleta e vá embora, homem.

Foi o que fez. O vendedor tentou impedir mas se conteve, ainda bem. Paguei e fui para casa. Ao chegar, satisfeito (dava para ver na cara), dona Lectícia perguntou

– Que aconteceu?

– Nada. Foi só um presente de Natal que acabei de ganhar.

Tudo certo. Que, no fundo, Natal é isso. Ou deveria ser. Mais dar, que receber. É, sobretudo, fraternidade. É permitir que o melhor de nós se revele. É ainda crer que o mundo, algum dia, vai ser mais justo. E melhor. Bom Natal para todos.

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