Mais um crime de trânsito sem punição: Motorista que atropelou ciclista no Viaduto Joana Bezerra é indiciado por homicídio culposo

Publicado em 09/06/2019 às 11:36 | Atualizado em 11/05/2020 às 14:52
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Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem  

 

Em tempos de retrocesso na segurança viária brasileira, a sociedade leva mais uma rasteira na busca pela moralidade e justiça contra os excessos ao volante. O motorista que atropelou e arrastou por 50 metros o ciclista César Filipe Gomes da Silva, de 30 anos, ferindo um segundo, em março passado, na Ponte João Paulo II, na Ilha do Leite (que ao lado do Viaduto Capitão Temudo compõe o Complexo Joana Bezerra), não vai ser preso. Nem agora nem, provavelmente, nunca. O delegado de Delitos de Trânsito de Pernambuco, Paulo Jean, bem que tentou, mas não conseguiu comprovar que o condutor que praticou o crime estava em alta velocidade no momento da colisão e que poderia ter consumido bebida alcoólica antes de dirigir. O motorista, o empresário do ramo de eventos e integrante de uma banda local Hélio da Silva Mendonça, de 33 anos, conhecido como Poca, foi indiciado por homicídio e lesão corporal culposo (sem intenção) com omissão de socorro, agravadas pelo fato de haver mais de uma vítima – três ciclistas pedalavam, um morreu e um ficou ferido. E, assim, poderá pegar, no máximo, dez anos de pena, mas de detenção. Ou seja, sem prisão. Além disso, ter a CNH suspensa.

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Embora imagens das câmeras da CTTU – captadas do alto e, devido à distância, não muito claras, é verdade – mostrem que a caminhonete Range Rover Evoque branca, placa EVD-3889, conduzida pelo empresário estava trafegando rápido, o veículo não foi periciado no local porque o motorista não parou para socorrer os ciclistas que pedalavam na volta do trabalho, em Boa Viagem, na Zona Sul do Recife, para casa, na periferia da Zona Norte. Isso comprometeu a perícia que poderia comprovar o excesso de velocidade. O veículo, inclusive, só foi identificado pela polícia por ter sido flagrado por várias câmeras existentes antes do local do atropelamento. Numa delas, de uma lombada eletrônica localizada na altura do 3º Jardim de Boa Viagem, a Range Rover Evoque branca passou acima da velocidade permitida. Não foi multada porque entre as 22h e às 6h todos os equipamentos de fiscalização eletrônica do Recife registram as infrações, mas não multam. O desligamento acontece há mais de dez anos e foi provocado pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE), sob alegação de que estava garantindo a segurança pública.

Nós já esperávamos um resultado parecido. A família tem sofrido muito e sabemos que será difícil ver a justiça ser feita. É revoltante, principalmente quando vemos o motorista dizer que foi surpreendido pelos ciclistas. Foi ele quem atropelou meu irmão e nossos amigos", Márcio Silva, irmão de César Filipe

A hipótese de que o condutor teria ingerido bebida alcoólica antes do atropelamento, outro fato fundamental para tipificar o crime como doloso (intencional), também não se confirmou. “Sabemos que o suspeito estava numa festa open bar antes do atropelamento, mas não conseguimos provar o consumo. Ouvimos algumas pessoas e todas afirmaram não tê-lo visto bebendo. Ficou difícil chegar a provas, embora a velocidade acima do permitido seja evidente”, afirmou o delegado Paulo Jean. Agora, é aguardar a decisão do MPPE, que analisa o inquérito policial. Uma perícia das imagens das câmeras da CTTU para identificar a velocidade desenvolvida pela Range Rover Evoque poderá ser solicitada, mudando o rumo do processo.

César Filipe foi criado usando a bicicleta. Em 2003, perdeu o irmão atropelado enquanto pedalava em Olinda  

 

 

César Filipe Gomes da Silva pedalava ao lado dos amigos Paulo Victor Moura, 33, e Jonatan da Silva Gadelha, 17, colegas de trabalho como auxiliares de cozinha e de criação em Chão de Estrelas, no bairro de Campina do Barreto, periferia da Zona Norte do Recife. Quase todos os dias faziam o mesmo percurso pelo chamado Viaduto Joana Bezerra. Os três amigos voltavam do trabalho, numa lanchonete em Boa Viagem, entre 0h e 1h do dia 9 de março, quando foram atropelados. Os três subiam a Ponte João Paulo II, próximo ao acostamento da faixa da esquerda, no sentido Boa Viagem-Olinda. César Filipe foi arremessado a 50 metros de distância e morreu momentos depois do impacto. Jonatan foi ferido na mão direita, levando sete pontos. Paulo Victor nada sofreu. É importante destacar que, pelo Plano Diretor Cicloviário (PDC) da Região Metropolitana do Recife, estudo realizado com recursos públicos (quase R$ 1 milhão) que recomenda a implantação de 591 quilômetros de estrutura cicloviária nas 15 cidades da RMR, em quase 80% do percurso dos ciclistas deveria existir algum tipo de estrutura ciclável. Ou seja, uma ciclovia ou ciclofaixa para proteger quem pedala do tráfego motorizado. No local exato do acidente era para ter sido implantada, desde 2014, um ciclovia pela Prefeitura do Recife.

Em depoimento à polícia, o empresário que atropelou os ciclistas disse que sido surpreendido pelas vítimas e que não parou para prestar socorro porque teve medo de ser assaltado.

 

 

SUCESSÃO DE IMPUNIDADE

Casal de amigos em Boa Viagem

Outro caso de morte no trânsito que também coleciona episódios de impunidade é o atropelamento do casal de amigos Isabela Cristina de Lima, 26 anos, e Adriano Francisco dos Santos, 19, esmagados quando estavam na porta de casa, numa comunidade às margens da Avenida Desembargador José Neves (Canal do Jordão), em Boa Viagem, pelo empresário Pedro Henrique Machado Villacorta, 28 anos, que estava alcoolizado no dia do atropelamento e tinha um histórico de fazer vergonha como condutor: acumulava em 2016, época da colisão, 116 pontos na CNH resultantes de 27 multas registradas entre 2012 e 2016. O empresário foi retirado do local pela PM e levado, mesmo sem ferimentos, para atendimento na UPA da Imbiribeira, no lugar de ser encaminhado à delegacia de polícia. Está livre até hoje. Villacorta, inclusive, por pouco não escapa do julgamento por homicídio doloso. O juiz do caso desclassificou o crime para culposo, mesmo o MPPE tendo denunciado por dolo eventual. Mas, em 2017, o TJPE manteve a denúncia dos promotores.

 

Isabela e Edvaldo foram esmagados na porta de casa e até hoje motorista, alcoolizado, está em liberdade

 

Onze anos de impunidade

Um dos que mais tiveram repercussão no Recife foi o da morte da auxiliar de enfermagem Aurinete Gomes de Lima, 33 anos, em 2008. Aurinete morreu na hora, o marido Wellington Lopes e a filha, que na época tinha seis anos, ficaram gravemente feridos quando o carro em que estavam foi praticamente destruído pela caminhonete dirigida pelo empresário Alisson Jerrar Zacarias dos Santos, após avançar um semáforo da Avenida Domingos Ferreira, em Boa Viagem.

O condutor estava a mais de 100 km/h e alcoolizado. Tinha virado a madrugada numa boate. Onze anos depois do crime e tendo passado todo o tempo livre, Jerrar foi condenado a oito anos de prisão, mas em regime semiaberto. Até hoje não passou uma única noite na prisão e segue levando uma vida normal, enquanto seus advogados recorrem da condenação nas diversas instâncias judiciais. A família de Aurinete também segue a vida, mas ruminando, por todos esses anos, a angústia provocada pela impunidade.

 

Caso da auxiliar de enfermagem Aurinete, morta em Boa Viagem, segue impune. Foto: Guga Matos/Arquivo JC Imagem

 

Injustiça histórica

Rosemary Costa de Sá sofre até hoje a morte do pai, o aposentado João Rufino de Sá, 76 anos, atropelado sobre a calçada, em 2007, por um motorista alcoolizado, que terminou indiciado por homicídio culposo. "Embora sejamos de classe média, o assassino, Felipe Rabello Emery, um jovem de 19 anos, era e continua sendo rico. De tão bêbado que estava ao volante, dormiu ao lado do corpo do meu pai, depois de atropelá-lo sobre a calçada, em Casa Forte (Zona Norte do Recife). Na época, ainda não existia a Lei Seca e, apesar de os policiais o encontrarem totalmente alcoolizado dormindo no veículo, pagou uma fiança de R$ 900 e foi liberado. Terminou indiciado por homicídio culposo (sem intenção) e, mesmo assim, nem cumpriu uma pena alternativa. A defesa alegou que o crime prescreveu. Enquanto isso, nossa família ficou destruída e até hoje não se recuperou de tanta dor. Por tudo isso, defendo que matar no trânsito alcoolizado deveria ser um crime inafiançável”,

Liberado pela Justiça

O motorista de ônibus Eduardo Pereira da Silva, 42 anos, está internado em estado grave desde o dia 1º de maio deste ano, na UTI do Hospital Miguel Arraes, em Paulista, no Grande Recife, depois que foi atingido pelo motorista Wandeilson Alves dos Santos, autuado em flagrante por dirigir alcoolizado em sem CNH. Apesar da prisão em flagrante, a Justiça de Pernambuco decidiu por liberá-lo na audiência de custódia realizada no dia seguinte, no Fórum de Olinda, determinando apenas algumas medidas cautelares. O acusado do crime segue livre.

 

 

 

Ninguém viu

Até hoje a morte do ciclista e engenheiro elétrico Hélio Almeida, 64, segue impune. Nenhuma câmera ou testemunha conseguiu identificar a placa do Fiesta prata que é visto atropelando o engenheiro por trás, às 5h30 da manhã do dia 21 de março de 2017, na Rua Carlos Chagas (continuação da Rua dos Palmares e da Avenida Mário Melo, em Santo Amaro, área central do Recife). Até hoje o motorista culpado segue sem face.

Sem culpados

Sebastião Tenório, 53, foi atropelado quando empurrava a bicicleta, em Olinda, em março de 2017. O motorista do veículo Gol que atropelou Sebastião abandonou o automóvel e fugiu. Retornou depois de algum tempo. Afirmou à polícia que saiu por temer ser agredido diante da cena do homem estirado ao chão, sobre uma faixa de pedestres. Segue impune até hoje.  

Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem  

 

Mistério

O polidor Anderson Pedro da Silva, 23, foi atropelado por um ônibus quando seguia para o trabalho de bicicleta, em janeiro de 2017, no Fundão, periferia da Zona Norte do Recife. O motorista até hoje não foi identificado. Nem mesmo o fato de testemunhas terem fornecido a placa e a linha do coletivo foi suficiente para localizar o condutor. A morte do ciclista é mais um crime sem face, sem autoria.

Culpa dividida

A morte de Toinho, como o cozinheiro e bicicleteiro Antônio José da Silva, 53, era conhecido, foi brutal e imediata. Antônio José foi atropelado quando tentava atravessar a BR-101, na altura do bairro da Macaxeira, Zona Norte do Recife, pelo motorista de uma carreta que, ao vê-lo, não conseguiu frear a tempo. Era a tarde do dia 11 de janeiro de 2017. Toinho tinha quase concluído a travessia. Foi pego já no acostamento. É um dos poucos casos em que o motorista parou para prestar socorro e que a responsabilidade do caso foi dividida entre vítima e acusado. A vítima, porque fez uma travessia forçada. E o motorista porque estava acima da velocidade permitida.

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