Por que as bikes sem estação e os patinetes elétricos não deram certo?

Publicado em 09/02/2020 às 19:59 | Atualizado em 08/05/2020 às 12:24
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Encerramento e desaceleração da operação em diversos mercados, entre eles o Brasil, refletem os desafios que a micromobilidade tem pela frente. Foto: Yellow/Divulgação  

 

Em julho de 2019 as bicicletas dockless (sem estação) e os patinetes elétricos abandonaram o Recife, apenas seis meses depois de chegar em duas áreas da capital – parte do Centro e da Zona Sul. Há menos de duas semanas, a Grow – fusão da mexicana Grin com a brasileira Yellow – anunciou a retirada quase total do mercado brasileiro, deixando usuários e toda a cadeia da micromobilidade entristecida e em alerta. Afinal, é lamentável para todos que defendem a mobilidade ativa na humanização das cidades não ver mais as bikes e os patinetes pelas ruas. Já que, quanto maior a presença e a utilização desses equipamentos pelas pessoas, maior é a visibilidade para forçar políticas públicas que estimulem a ciclomobilidade. Embora o discurso em todas as situações tenha sido de que foi uma paralisação estratégia, o mercado não acredita no retorno. Pelo menos não da mesma forma. Agora, a questão é entender o porque de eles (o tipo de negócio) não ter dado certo.

 

Como destaca Tomás Martins, fundador e CEO da Tembici, parceira do Banco Itaú na operação dos sistemas de bicicletas compartilhadas com estações BikeItaú – entre eles o Bike PE –, é preciso, antes de tudo, entender que as dificuldades do mercado dockless – seja com as bicicletas ou com os patinetes – não têm sido enfrentadas apenas no Brasil. É um fenômeno mundial. Aconteceu em diferentes cidades, mercados e empresa, no Brasil, na Inglaterra, na China, na Espanha, nos Estados Unidos e no México, por exemplo. Antes da Grow, a Lime também abandonou o Brasil e desacelerou sua operação em 12 cidades ao redor do mundo, sendo sete delas na América Latina. Tinha chegado apenas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Negócios que tiveram uma grande explosão em 2018 e 2019.  

 

 

 

Na sequência, é importante observar as peculiaridades e dificuldades enfrentadas pelo mercado de micromobilidade. “Temos muito respeito por esses grupos que investem no setor porque a micromobilidade não é um mercado fácil. Estou há nove anos nele e sei disso. O automóvel, o ônibus e o metrô, por exemplo, estão há mais de 90 anos recebendo subsídios públicos para operação, infraestrutura e financiamentos, e enfrentam problemas. Enquanto a micromobilidade nunca teve subsídios e ainda é vista com desconfiança”, pontua Tomás Martins. Ao mesmo tempo, o CEO da Tembici atesta que a micromobilidade é um caminho sem volta. “As pessoas já estão repensando e vão repensar cada vez mais os deslocamentos de três a sete quilômetros nas cidades, cada vez mais ocupadas. Isso é irreversível. Agora, tudo é aprendizado, lições que vamos tirando das situação. Vamos ter mudanças nas cidades e nas formas de deslocamento e a micromobilidade estará presente nesse processo. Isso é certo”, avalia Tomás Martins.  

 

 

Sistema que chegou ao Recife em fevereiro operou  por menos de seis meses. Foto: Roberta Soares
Yellow - Sistema que chegou ao Recife em fevereiro operou por menos de seis meses. Foto: Roberta Soares
Serttel demonstrou interesse em colocar suas bicicletas sem estação no lugar das da Grow, mas projeto não avançou. Fotos: Cláudio Vieira/Divulgação
BikeSertell1_Cludio Vieira - Serttel demonstrou interesse em colocar suas bicicletas sem estação no lugar das da Grow, mas projeto não avançou. Fotos: Cláudio Vieira/Divulgação

 

O preconceito com a micromobilidade e, como consequência, a indisposição do poder público em implantar e ampliar a infraestrutura necessária para que as pessoas se sintam seguras para pedalar ou utilizar os patinetes, é outro fator que influencia. E como as ruas seguem sendo carrocratas, com o planejamento ainda totalmente voltado para o automóvel, essa influência negativa é potencializada. Para piorar a situação, a micromobilidade ainda é um negócio de risco e que depende de patrocinadores fortes. Basta observar o papel do Banco Itaú, no caso dos sistemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife, Salvador (Brasil), Buenos Aires (Argentina) e Santiago (Chile). Além de marcas como Hapvida, Unimed e Mastercard que também patrocinam sistema de bike share.

 

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Sem uma segurança viária que a favoreça e a possibilidade de retiradas e devoluções nas ruas, sem estações, os desafios regulatórios se tornam maiores para a operação dokless, com a gestão pública exigindo mais e mais regras. Estima-se que as empresas do segmento gastem 7% do faturamento com essas questões. Como se não bastasse, a durabilidade dos patinetes e bicicletas sem estação é inferior quando comparada com os que exigem estação. Outro aspecto importante é o valor cobrado pelas viagens, principalmente dos patinetes, considerado alto para os padrões brasileiros – média de R$ 3 para liberação e R$ 0,50 por minuto.  

 

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Fotos:Renato Cerqueira/Agência Estadão
2 - Fotos:Renato Cerqueira/Agência Estadão
Patinetes elétricos provocaram muita polêmica por causa da insegurança, potencializada pela ausência de infraestrutura
jpg - Patinetes elétricos provocaram muita polêmica por causa da insegurança, potencializada pela ausência de infraestrutura

 

Na avaliação de quem opera o sistema com estação, outra dificuldade do segmento dockless é a disponibilidade dos equipamentos para os usuários, reflexo do tipo de operação. “Qualquer serviço de transporte precisa ser confiável e, para que isso aconteça, é necessário que o usuário saiba que vai encontrar a bicicleta. Como os equipamentos dockless são devolvidos num lugar específico, como uma estação, nem sempre há disponibilidade. As pessoas usam se encontram a bicicleta ou o patinete, por exemplo. No caso do BikePE e de outros sistemas com estação, é o oposto. O cliente sabe onde ir e o que vai encontrar”, pontua Tomás Martins.  

 

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No caso da Grow, a retirada das bikes dockless foi total no Brasil. Já os patinetes elétricos permaneceram em apenas três cidades: São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. A americana Lime decidiu sair do mercado brasileiro seis meses depois de iniciar a operação. Assim como a Grow, a justificativa foi de que era uma estratégia global para alcançar a sustentabilidade financeira. A Lime operava em São Paulo e no Rio de Janeiro. Saiu de 12 cidades ao redor do mundo, sete delas na América Latina.

A desaceleração da operação da Grow e da Lime, entretanto, não significa o fim do compartilhamento dockless. É um claro sinal de que o mercado privado está passando de um modelo subsidiado por financiadores de grandes quantias para um que terá que se sustentar por conta própria. A Tembici, por exemplo, garante que a operação atualmente é 50% custeada pelo patrocinador e a outra metade pelos clientes.

 

ENQUANTO ISSO, OS SISTEMAS COM CRESCEM

Ao contrário da Lime e Grow, que encerraram ou estão desacelerando suas operações, os sistemas que exigem a retirada e a devolução das bicicletas a partir de estações só crescem nos mercados onde já estão presentes. Apesar de ter o mesmo número de estações desde 2014, quando a pernambucana Serttel era a então parceira do Banco Itaú, a versão pernambucana do projeto – o Bike PE – tem números positivos e crescentes. Segundo a Tembici, a base de usuários do sistema aumentou 147% entre 2018 e 2019, as viagens cresceram 50% em 2019 e em um único dia foram realizadas 12 mil viagens.  

 

BikePE não tem expansão desde que foi criado, em 2014. Mas depois que passou a ser operado pela Tembici, a utilização só cresce. Foto: Guga Matos/Acervo JC Imagem
5 - BikePE não tem expansão desde que foi criado, em 2014. Mas depois que passou a ser operado pela Tembici, a utilização só cresce. Foto: Guga Matos/Acervo JC Imagem
Sistema com estação de Fortaleza é o resultado oposto do cenário nacional dos dockless. Só cresce
5 - Sistema com estação de Fortaleza é o resultado oposto do cenário nacional dos dockless. Só cresce
Fotos: Prefeitura de Fortaleza/Divulgação
6 - Fotos: Prefeitura de Fortaleza/Divulgação

  Para a Tembici, o foco no uso das bicicletas como transporte é o grande diferencial do sistema. E, de fato, essa percepção é verdadeira: 80% das viagens do Bike PE são realizadas durante os dias da semana. O sistema pernambucano, inclusive, só perde nesse aspecto para São Paulo, que tem 85% das viagens realizadas de segunda à sexta-feira.

 

Em Fortaleza, onde opera o Bicicletar – compartilhamento de bicicletas semelhante ao Bike PE –, o crescimento também é realidade. O sistema terá um crescimento de 150% até o fim de 2020, chegando a 250 estações, segundo os planos da Prefeitura de Fortaleza. E o que é melhor: a expansão está sendo financiada com recursos obtidos com o pagamento do estacionamento rotativo Zona Azul. E está chegando à periferia da capital.

 

O POSICIONAMENTO DA GROW

O discurso da Grow é o mesmo de duas semanas atrás, quando anunciou a redução da operação no Brasil.

“A Grow, líder em micromobilidade presente em 7 países da América Latina e que já realizou mais de 20 milhões de corridas, passa hoje por um processo de reestruturação. A decisão foi tomada para que a companhia promova um ajuste operacional e continue prestando serviços de forma estável, eficiente e segura. Esta é uma estratégia da empresa e uma necessidade do mercado.

No Brasil, onde houve expansão acelerada em 2019 e a operação é muito maior que nos outros países em que a Grow está presente, foi feito um balanço operacional e percebemos que seria necessário promover essa reestruturação. Esse processo inclui o fechamento de algumas cidades. A operação de bikes está suspensa temporariamente em todo o país.

Acreditamos que São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba, onde seguiremos operando com patinetes, são as cidades que possuem maior oportunidade de crescimento neste momento e onde existe uma ampla possibilidade de transformar a cultura da mobilidade. Esse é o retrato do momento que a Grow atravessa, com base em seu planejamento estratégico para 2020. No futuro, a empresa pode tomar novas decisões sobre suas operações no País”.

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