Para o policial militar Wesley Soares ser diagnosticado com um ‘surto psicótico’, suspeita que paira sobre sua atitude do domingo, no Farol da Barra, seria necessário um trabalho de escuta técnica e criteriosa, afirma o psicólogo Edilson da Paz, pós-graduando em neuropsicologia e com experiência de três anos no acompanhamento de policiais militares. O policial militar Weslei Soares foi baleado e morreu após bloquear a frente do Farol da Barra e efetuar disparos para a cima, na tarde do domingo (28).
"Não tem como afirmar que foi surto, ou uma condição clínica específica neste momento. O emprego dessa palavra entra em um aspecto mais próximo da loucura, que é vista como sinônimo de ‘desrazão’ no senso comum. Isso pode colaborar para a desconsideração da coerência do Wesley, e sermos injustos com o acontecimento”, analisa.
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“A verdade do que aconteceu morreu com ele”, acrescenta o psicólogo, que aponta ainda que o melhor termo para denominar o episódio ocorrido com o soldado é “crise”. "Pois se trata de um momento crítico e decisivo, mantendo o cuidado em não estereotipar o acontecimento e sem arriscar desconsiderar todo o processo e os múltiplos fatores antecedentes ao ocorrido, o qual não temos acesso", argumenta.
Também com especialidade no acompanhamento de policias militares, a psiquiatra Sandra Peu explica que o surto psicótico acontece quando há quebra de relação da realidade. Ela também não concorda com a definição prévia usada para caracterizar o episódio. Caso fosse mesmo constatado um quadro de surto, era necessária a intervenção psiquiátrica, o que não ocorreu.
“Psicólogos podem ajudar, mas com estratégias específicas e, às vezes, precisa de manejo de medicação”, acrescenta a médica, que já participou de intervenções do tipo. “Já aconteceu de o paciente estar com algum instrumento que poderia fazer mal a si próprio. A polícia faz o desarme, mobiliza e a gente aplica o medicamento. Em poucos segundo ele dorme”, diz a especialista .
Ela concorda que a negociação era difícil por ser conduzida por policiais militares, colegas de farda de Wesley. “A cena foi, para mim, como se eu tivesse que operar meu filho”, disse. Sandra defende que os policiais que se envolveram no episódio sejam afastados, avaliados por psiquiatras e até acompanhados profissionalmente. “Tenho certeza que eles não queriam matar um colega. Eu duvido que eles tivessem essa ordem, mas acho que a ordem emocional, a frieza exigida levou ao desfecho”, diz.
Instituição
Outra questão apontada pelos profissionais é a necessidade de serem criadas estratégias, dentro da própria Policia Militar, que contribua para identificar possíveis casos como esse. Para isso, não basta apenas contratar psicólogos ou psiquiatras, mas olhar para o processo em que o se constrói um agente de segurança pública no Brasil.
“Quando as pessoas entram na PM e se tornam policiais, elas precisam se despir da sua subjetividade para construir uma nova identidade pessoal que esteja associada a instituição, baseado nas premissas do altruísmo, disciplina e hierarquia. É um processo que convida o sujeito a enxergar o mundo de outra forma”, diz o psicólogo Edilson da Paz, se referindo a afirmação de que, segundo colegas de unidade, o policial não concordava em fazer cumprir o fechamento do comércio da cidade, medida adotada para combater o avanço da covid-19 no estado.
“É possível que ele tenha experimentado um contexto de dissonância cognitiva, que é quando um sujeito entra em conflito com o que ele acredita ser correto e o que ele precisa praticar. Evidenciando um conflito entre as normas militares e a visão de mundo dele como pessoa. Essa situação é experimentada num processo emocional muito intenso em busca de uma coerência. São pessoas que precisam de apoio para que situações como essa sejam previnidas”, argumenta.
Já a psiquiatra Sandra Peu lembra que o serviço de assistência à saúde mental no Brasil ainda é precário, tanto na rede privada como pública, e que os policiais militares têm o agravamento de evitarem procurar ajuda para lidar com seus problemas. “A psicofobia no meio militar é significativa. Se um policial diz ao superior que está em tratamento, ele é mal visto, menosprezado... isso não é exclusivo da Bahia”, destaca.
Para ajudar a melhorar o cenário, ela recomenda melhorar a comunicação institucional, ofertar mais serviço para tratamento, sensibilizar os membros da corporação para observarem comportamentos de risco e colocar as pessoas para tratarem e reverem as regras sociais da instituição. “Esse não me parece ser um caso isolado, visto que eu recebo policiais muito desgastados emocionalmente, abalados e com sérios problemas”, diz.
*Com a orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro