Coronavírus

80% dos pacientes que tiveram covid têm alguma disfunção cognitiva, aponta estudo

Muita gente que teve a doença revela 'apagão' na memória pós-covid

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Do jornal Correio para a Rede Nordeste

Publicado em 29/05/2021 às 17:58
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Bate aquela fome na madrugada, está na hora de levantar e assaltar a geladeira. Chegando na cozinha, pane geral: “O que eu vim fazer aqui mesmo?” Depois, conversando com os amigos, as palavras fogem da memória e simplesmente a cabeça trava. Num mundo pré-pandemia, um colega diria logo que é a velhice chegando. Contudo, se você é um dos mais de 16 milhões de brasileiros que contraíram a covid-19, é possível que o diagnóstico seja disfunção cognitiva.

Estudos recentes identificaram mais de 55 tipos de sequelas em pacientes que tiveram a doença, que podem durar meses, incluindo perda de memória, dificuldade na execução de tarefas simples e mudanças de comportamento.

Elas já possuem até uma definição científica: Síndrome Pós-Covid. Uma pesquisa inédita, realizada pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor/FMUSP), passou a estudar estes casos e mostrou que o problema é mais comum do que parece. Segundo a primeira fase da pesquisa, 80% dos pacientes que tiveram a covid-19 apresentaram algum tipo de disfunção cognitiva.

Foram 185 pessoas ouvidas na primeira fase, ainda em 2020. Atualmente, mais de 600 voluntários participam do estudo, com indivíduos entre 8 e 80 anos e que tiveram diferentes graus da doença. O que mais assusta é que estes lapsos neurais não escolhem gravidade, tampouco faixa etária. “O resultado foi impactante: independentemente do grau da doença, da faixa etária ou do nível de escolaridade, os pacientes podem sofrer de disfunção cognitiva”, concluiu a coordenadora do estudo, a neuropsicóloga Lívia Stocco Sanches Valentin, que utiliza um aplicativo chamado MentalPlus para identificar e até tratar estes distúrbios. “Este jogo nasceu para detectar possíveis disfunções neurológicas em pacientes que eram prejudicados após o uso de anestesia geral profunda. Esse mecanismo não só avalia, como ajuda na reabilitação”.

 

Arquivo Pessoal
Catherine teve sintomas moderados e Maria precisou ficar internada - Arquivo Pessoal

Sistema travado

A pesquisa apenas reforçou o que a fotógrafa Catherine Avilés vive na pele. Ela tem 30 anos e sua mãe, Maria de Fátima, 66. Ambas pegaram a covid-19 em dezembro do ano passado. Catherine teve sintomas moderados e Maria precisou ficar internada. Elas se recuperaram, mas a cabeça não era mais a mesma.

“Minha mãe ligou para uma empresa querendo resolver um assunto e abriu protocolo de atendimento. Dois dias depois, pediu para meu irmão que ele ligasse pra fazer exatamente o que ela tinha feito anteriormente. Ela simplesmente não lembrava de ter ligado. Começamos a notar o esquecimento no dia a dia e dificuldade de dizer algumas palavras comuns”, relata Catherine. “Eu vou ali pegar um macarrão, volto com uma caixa de fósforo. Passei 25 dias com dores intensas na cabeça. Depois disso... [longa pausa]. Aí, tá vendo? Esqueci o que eu ia falar”. Dona Maria já tomou as duas doses da vacina. Já Catherine pegou novamente covid-19 em março. Ela ainda se queixa de pequenos lapsos.

Professor de matemática, Tiago Trindade teve a doença e seu quadro de infecção também não foi grave. Mesmo assim, sentiu perda de memória. “Era constante. A cada 100 palavras, esquecia uma. Esquecia uma ou duas palavras nas aulas e preciso pescar no livro, que fica ao meu lado. Se não fosse isso, estava lenhado. Era um leve sintoma de dislexia. Passou com o tempo”, descreve.

Apesar do estudo apontar que qualquer pessoa que contraiu a covid-19 (seja sintomático ou não) pode desenvolver algum tipo de disfunção cognitiva, ainda não se sabe ao certo quanto tempo pode durar. Tudo depende do tratamento e da pessoa.

Nilson Luiz é radialista e faz transmissões de jogos e resenhas esportivas. Ele começou a sentir um esquecimento repentino após se curar da covid-19. “Logo depois que tive coronavírus, as palavras sumiam da mente. Uma vez estava em casa vendo televisão, quando minha mulher perguntou se eu não tinha que ir para o estúdio. Eu tinha esquecido completamente de ir trabalhar”, disse Nilson, que teve os lapsos por duas semanas.

Olivia Borges não teve a mesma sorte. A advogada de 40 anos pegou a covid-19 em junho de 2020, mas levou nove meses com sintomas cognitivos. “Quando me recuperei da covid, sentia minha mente embaralhada, lenta, confusa e não conseguia encontrar as palavras que queria falar ou escrever. Fazer leitura é algo que demandava tempo, pois precisava ler mais vezes para conseguir interpretar. Era uma perda da memória recente e já entrei em desespero por tudo isso, pois minha profissão exige muito da minha cognição. Apenas este ano as coisas melhoraram, mas as vezes ainda acho que não estou 100% curada destes lapsos”, revela Olívia.

Acervo pessoal
Após se recuperar da covid-19, o professor de matemática Tiago Trindade sentiu lapsos de memória durante as aulas - Acervo pessoal

Tratamento

Pesquisadores norte-americanos fizeram um compilado das 15 principais publicações sobre as Síndromes Pós-Covid. Dos 47.910 pacientes ouvidos, foram identificados 55 sintomas que permanecem no indivíduo mesmo após a cura. Fadiga foi o sintoma mais identificado, em 58% dos casos. Contudo, as sequelas cerebrais também estiveram presentes, como dor de cabeça frequente (44%), dificuldade de atenção (27%) e perda de memória (16%).

Em Salvador, já existe uma clínica especializada em atender pacientes pós-covid. O Hospital Santa Izabel inaugurou no início do ano a unidade Álvaro Lemos, uma linha de cuidados voltadas para a reabilitação de pacientes que venceram o coronavírus, mas tiveram algum tipo de sequela. Primeiro na Bahia, o local tem uma equipe multidisciplinar para atender os quadros.

Neurologista da unidade e professor da rede UniFTC, o médico Marcel Leal afirma que se tornou comum pacientes procurarem a clínica com problemas cognitivos. “Na maioria dos casos, são situações menos graves, com quadros que apresentam esquecimento, desatenção ou dificuldade de operar tarefas simples do dia a dia. O que chama atenção é um quadro maior de cefaleia (dor de cabeça). Ainda não identificamos uma evolução para um quadro mais grave. São mais raros”.

Acervo pessoal
O radialista Nilson Luiz esqueceu até de ir trabalhar - Acervo pessoal

Apesar de preocupante, a maior parte dos casos cognitivos pode ser resolvida de forma simples e sem traumas. “O tratamento requer, na maioria das vezes, reabilitação cognitiva, com exercícios específicos. Existem dispositivos e aplicativos voltados para isto. Inclusive, é importante que o paciente faça em casa também, como jogos de memória, palavras cruzadas, leitura e escrita. Muito dificilmente um paciente vai evoluir para uma síndrome demencial que precise de medicamentos. Na maioria dos casos, um acompanhamento com a equipe da psicologia também se faz necessário. Quanto mais precoce esta terapia for iniciada, melhores os resultados na recuperação dos neurônios”, explica o médico.

Segundo Marcel, o coronavírus pode agredir o cérebro de duas formas. A primeira é o dano secundário, que é a falta de oxigenação no cérebro, por exemplo. Porém, o vírus também pode atacar diretamente o córtex cerebral. “O vírus entra pelas vias respiratórias. Mas uma vez dentro do indivíduo, ele afeta diversos tecidos e células do corpo, incluindo o sistema nervoso. Ele agride as células nervosas, levando à morte de algumas delas. Esta ação direta do coronavírus ataca os astrócitos e os neurônios, originando os problemas cognitivos”.

A unidade pode estar perto de identificar novas sequelas mais graves da doença, que foram observadas em raros estudos sobre pacientes pós-covid. A unidade está em fase investigativa de um caso em que a pessoa apresentou quadro compatível com a síndrome de Guillain-Barré, uma forma de inflamação aguda do sistema nervoso periférico que prejudica atividades motoras e sensitivas, exigindo, na maioria dos casos, internação do paciente. Esta patologia tem sido mais relacionada à infecção por Zika vírus.

Além dos quadros clínicos, alguns transtornos de ansiedade e depressão estão mais frequentes em pacientes que venceram a doença. “Se tornou muito comum receber pacientes com falhas cognitivas e confusão mental. Também temos muitos quadros de ansiedade, depressão e descontrole. O medo é extremo, se tornando muitas vezes patológico. Medo de morrer, do que viveu durante a doença, de como será o futuro, carregado de muita angústia e tristeza. O mundo está doente”, diz a psiquiatra Maria das Graças Bacelar. Para diminuir impactos, convém não esquecer três orientações: usar a máscara, higienização e distanciamento social. Seu cérebro agradece.

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