Indicação de defensor da cloroquina ao Nobel da Paz não pode ser confirmada e nem respalda tratamento
São enganosas as postagens que afirmam que o médico Vladimir Zelenko foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz por defender o uso de medicamentos como a hidroxicloroquina no tratamento contra a covid-19. As indicações são mantidas em sigilo por 50 anos e podem ser feitas por várias pessoas, como membros de assembleias e governos nacionais e professores universitários. Portanto, mesmo que a indicação fosse confirmada, ela não representaria necessariamente um apoio internacional à tese de Zelenko
Conteúdo verificado: Postagens nas redes sociais segundo as quais o médico Vladimir Zelenko, conhecido por defender o uso de medicamentos como a hidroxicloroquina no tratamento contra a covid-19, foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz.
São enganosas postagens que tratam uma possível indicação do médico Vladimir Zelenko, conhecido por defender o uso da hidroxicloroquina, combinada com azitromicina e zinco, no tratamento contra a covid-19, ao Prêmio Nobel da Paz, como um respaldo ao uso do medicamento.
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O Comprova investigou o conteúdo de postagens feitas por mais de 100 páginas no Facebook e também compartilhado pelo músico Roger Moreira, do Ultraje a Rigor, no Twitter. As publicações fazem referência ao site da America’s Frontline Doctors, organização de direita americana conhecida por difundir dados falsos a respeito da pandemia nos Estados Unidos – sua fundadora, a médica Simone Gold, já questionou, por exemplo, a segurança do uso de máscaras e das vacinas no combate à pandemia.
Um texto publicado no site da organização afirma que Zelenko foi “incluído em um grupo de médicos indicados ao Prêmio Nobel da Paz por seu papel no tratamento da pandemia”. Algumas dessas postagens acrescentavam ao texto: “Será que a falsa narrativa agora será a de que o Prêmio Nobel não tem credibilidade, ou algo parecido?”
Embora não tenha sido possível confirmar a indicação, ela não representa necessariamente um apoio internacional à tese de Zelenko. As indicações ao Nobel podem ser feitas por diversas pessoas, como membros de parlamentos, governos nacionais e por professores universitários. Se forem feitas dentro do prazo, todas as indicações são validadas e mantidas em sigilo por 50 anos.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) não recomenda o uso de qualquer destes medicamentos para tratar pacientes com o novo coronavírus e segue coordenando os esforços para desenvolver e avaliar medicamentos que tratem a doença. A entidade interrompeu os testes com hidroxicloroquina em pacientes graves hospitalizados com covid-19, uma vez que os dados do estudo Solidariedade mostraram que ela não é capaz de reduzir a mortalidade nesses casos.
Quanto à azitromicina, um antibiótico, a OMS ressalta que esses medicamentos são eficazes contra bactérias e não contra vírus e, por isso, não devem ser usados para prevenção ou tratamento da covid, embora possam ser usados para tratamento de infecções concomitantes em pacientes internados com a doença. Já em relação ao zinco, embora, assim como outras vitaminas e minerais, seja fundamental para o bom funcionamento do sistema imunológico, não há orientação da OMS para que seja usado na prevenção ou tratamento da covid-19.
Como verificamos?
O primeiro passo foi consultar o regulamento do Prêmio Nobel da Paz no que toca às indicações. Além de informações contidas no site oficial, entramos em contato via e-mail com os organizadores para confirmar a informação referente à indicação de Vladimir Zelenko.
Também buscamos informações sobre Zelenko em organizações médicas norte-americanas, como a American Medical Association (AMA) e a Federação dos Conselhos Médicos Estaduais dos Estados Unidos. Foram consultadas reportagens publicadas na imprensa e verificações anteriores feitas pelo Comprova, a fim de verificar sua relação com as discussões envolvendo tratamento contra a covid-19.
Por fim, buscamos informações sobre os sites em que a notícia da suposta indicação do médico para o Nobel da Paz foi publicada e entramos em contato com a America’s Frontline Doctors, organização norte-americana que publicou a notícia inicialmente, mas não tivemos resposta. Foi procurado, por meio do formulário de contato, o site The Internet Protocol, que não respondeu até a publicação deste texto.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 8 de junho de 2021.
A publicação
Publicado no dia 15 de maio, o texto do site Aliança Brasil Oficial, ao qual Roger Moreira faz referência em seu tuíte, baseia-se em uma informação divulgada no dia 2 na página da America’s Frontline Doctors, organização de direita conhecida por difundir dados falsos a respeito do combate à pandemia nos Estados Unidos. Este mesmo texto da America’s Frontline foi compartilhado em mais de 100 posts no Facebook.
Segundo o artigo, que foi traduzido para o português pelo Aliança Brasil Oficial, a lista de indicados ao Prêmio Nobel da Paz deste ano teria 43 nomes, incluindo Vladimir Zelenko e outros médicos. O site do Prêmio, porém, informa que foram 329 indicações em 2021.
O texto ainda afirma que Zelenko “alcançou destaque mundial no tratamento de pacientes com covid-19 com hidroxicloroquina e zinco, descobrindo que a mortalidade caiu 8 vezes com o uso dessas duas substâncias” e que, segundo ele, o tratamento com esses medicamentos nos primeiros cinco dias “reduz as taxas de mortalidade em 85%”, o que não é verdade. A OMS suspendeu os testes de hidroxicloroquina em pacientes graves ao perceber, de acordo com dados do estudo Solidariedade, que a hidroxicloroquina não reduzia a mortalidade nos pacientes de covid-19.
A publicação traz diversas citações de Zelenko em uma entrevista concedida em outubro a um canal israelense na qual ele defende o uso dos medicamentos e diz que os que negam a sua tese são “culpados de assassinato em massa”. Ainda de acordo com o texto, Zelenko “salvou a vida de seus pacientes com seu ‘Protocolo de Zelenko’ desde março de 2020”.
O link para a página do America’s Frontline Doctors foi compartilhado por diversas páginas de direita nas últimas semanas. Uma delas é Por um Brasil melhor, que publicou no dia 1º de junho. “Será que a falsa narrativa agora será a de que Prêmio Nobel não tem credibilidade, ou algo parecido? Vamos aguardar”, diz a postagem.
O Prêmio Nobel da Paz
O Prêmio Nobel da Paz é, segundo informações do site oficial, concedido por um comitê eleito pelo Stortinget, o parlamento norueguês. É concedido anualmente a pessoas e organizações que atuaram pela promoção da paz no mundo.
De acordo com o regramento do prêmio, que é detalhado na página, em 2021 houve 329 indicações, das quais 234 são individuais e 95 são organizações – número, portanto, bem diferente do informado pelo America’s Frontline Doctors e replicado pelo site Aliança Brasil Oficial.
A página do Nobel também informa que os nomes dos indicados, bem como outras informações acerca deles, são mantidos em sigilo por um período de 50 anos. Isso significa que não há como saber se Zelenko ou qualquer outra pessoa ou organização foram, de fato, indicados para o prêmio.
Em resposta ao questionamento enviado por e-mail pelo Comprova, a organização do Nobel reiterou essa informação: “Ao contrário da crença comum, não existe uma lista pública dos indicados ao prêmio este ano. A lista completa de indicados elegíveis para os prêmios de qualquer ano não é divulgada por outros 50 anos – uma restrição regida pelos estatutos do Nobel”.
Na seção de perguntas frequentes do site oficial do Nobel, consta um questionamento sobre rumores envolvendo indicações de determinadas pessoas para o prêmio. Na resposta, a organização alega que, independentemente de se tratar apenas de um rumor ou de uma informação vazada, não há como saber porque os dados oficiais são guardados em segredo por cinco décadas.
Na prática, porém, ainda que Zelenko tenha eventualmente sido indicado, isso não significa que há um apoio em escala internacional à sua tese. Isso porque, também de acordo com o site oficial, uma indicação ao Prêmio Nobel da Paz pode ser feita por qualquer pessoa que se encaixe nos critérios estabelecidos nos estatutos. A lista inclui, por exemplo, membros de assembleias e governos nacionais (como ministros) e atuais chefes de Estado, além de reitores e diretores de universidades, bem como professores universitários de áreas como História, Ciências Sociais, Direito, Filosofia, Teologia e Religião, entre outros. Isso significa que o rol de pessoas habilitadas a indicar alguém ao prêmio é extenso.
Tudo indica, porém, que caso Zelenko fosse indicado ao Nobel por seus experimentos referentes à covid-19, não seria na categoria Paz e, sim, na categoria Fisiologia ou Medicina, que é concedida pela Karolinska Institutet, em Estocolmo, na Suécia. O reconhecimento é destinado a pessoas que realizaram descobertas relevantes no domínio da fisiologia ou medicina.
Quem é Vladimir Zelenko
Vladimir Zelenko nasceu em Kiev, na Ucrânia, em 1973, e se mudou junto com a família, ainda criança, para os Estados Unidos. Esta verificação do Comprova, feita em abril do ano passado, mostra que a imprensa norte-americana o considera um imigrante russo que se converteu ao judaísmo e que atua numa comunidade chamada Kiryas Joel, próxima da cidade de Nova York.
Zelenko ganhou fama nos Estados Unidos em março de 2020 depois de gravar um vídeo endereçado ao então presidente do país, Donald Trump, e o publicar em seu canal no YouTube. No vídeo, que foi removido do YouTube por violar as regras da plataforma, Zelenko se apresenta e conta em detalhes uma “experiência” que vem desenvolvendo na comunidade de Kiryas Joel, sugerindo a combinação de hidroxicloroquina, azitromicina e zinco, a ser usada em pacientes de grupos de risco.
Embora tenha ganhado fama internacional entre os apoiadores do chamado “tratamento precoce” contra a covid-19, Zelenko não aparece listado entre os médicos membros da American Medical Association (AMA). O Comprova buscou pelas credenciais médicas de Zelenko a partir de duas ferramentas de busca de médicos disponíveis na aba de Saúde do site oficial do governo dos Estados Unidos.
O link leva ao diretório MedlinePlus, da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos. Lá, o Comprova buscou pelo nome de Zelenko em dois locais: a AMA e o portal DocInfo, da Federação dos Conselhos Médicos Estaduais dos Estados Unidos). Na primeira opção, Zelenko não é listado como um membro da AMA. A Associação esclarece que, para ser membro, o médico precisa aderir aos Princípios de Ética Médica da entidade, que inclui orientações sobre covid-19.
O nome dele é encontrado apenas quando a busca é refinada para médicos não membros. A especialidade médica registrada é medicina familiar, com a observação de ter sido autodesignada. Segundo a AMA, isso não significa, necessariamente, que ele tenha sido treinado ou tenha competência para exercer essa especialidade. Zelenko tem atuação em Monroe, no estado de Nova York.
A ferramenta de busca DocInfo mostra resultados para Zelenko, com atuação em três locais, os três no estado de Nova York: Highland Mills, Cedarhurst e Monroe. Ele também aparece certificado como médico familiar, com licenças ativas, além de Nova York, no estado da Flórida. Há, ainda, o registro de sua formação: a Universidade Estadual de Nova York, na Escola de Medicina e Ciências Biomédicas de Buffalo. Ele se graduou em 2000.
Zelenko e a covid-19
Embora tenha gravado um vídeo direcionado ao ex-presidente Donald Trump sobre sua experiência no tratamento contra a covid-19, o próprio Zelenko admitiu não ter publicado a sua pesquisa. Sua teoria, no entanto, ainda é compartilhada, mesmo que comprovadamente sem eficácia contra a covid-19.
O médico afirma ter tratado 700 pessoas com uma combinação de hidroxicloroquina, azitromicina e zinco. Desses, seis precisaram de internação, sendo que dois evoluíram para um quadro de pneumonia, dois necessitaram de intubação e um morreu. A vítima morta, segundo alega o médico, havia abandonado o tratamento.
Em uma entrevista ao ex-prefeito de Nova York e advogado do então presidente Donald Trump, Rudolph Giuliani, o médico relatou ter tratado cerca de 450 pacientes com sintomas iniciais da covid-19 com o coquetel. Defendeu que o tratamento reduz o risco de internação e deve ser receitado apenas para pessoas com mais de 60 anos ou com doenças crônicas, por causa dos efeitos colaterais das drogas.
No entanto, passado pouco mais de um ano e dois meses, nem Zelenko publicou sua pesquisa em revistas especializadas, nem a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), da OMS, reconheceu a eficácia dos tratamentos propostos por ele.
Em 1º de março deste ano, especialistas internacionais do Grupo de Desenvolvimento de Diretrizes da OMS concluíram que a hidroxicloroquina não deve ser usada no tratamento precoce da covid-19. A recomendação é amparada em seis ensaios clínicos randomizados, com 6 mil participantes com e sem exposição conhecida a uma pessoa infectada por covid-19.
A conclusão consta no site da Opas. Segundo o documento, por um lado “o estudo mostrou que a hidroxicloroquina não teve efeito significativo na morte e admissão ao hospital, enquanto a evidência de certeza moderada mostrou que a hidroxicloroquina não teve efeito significativo na infecção por covid-19 confirmada em laboratório e provavelmente aumentava o risco de efeitos adversos”.
Com esses resultados, o painel considerou que a hidroxicloroquina deixa de ser prioridade nas pesquisas para encontrar medicamentos que possam prevenir a covid-19. Os resultados completos estão publicados no The BMJ.
Quem publicou antes
A publicação mais antiga sobre uma suposta indicação de Vladimir Zelenko ao Nobel da Paz foi encontrada num site chamado The Internet Protocol, no dia 27 de abril de 2021. Um link para a publicação está disponível no site oficial de Vladimir Zelenko, onde é possível ver publicações dele a respeito do coquetel com hidroxicloroquina, azitromicina e zinco e até agendar consultas.
Ao clicar no link, contudo, o usuário é levado a uma página não mais disponível. Através da ferramenta WayBackMachine, foi possível chegar ao conteúdo original, assinado por Ivan Tkachenko. No texto, o autor diz que Zelenko é um médico ucraniano-americano que trabalha nos Estados Unidos há 16 anos.
Ele faz menção a uma postagem nas redes sociais em que um grupo de pessoas anuncia uma lista de potenciais candidatos, entre eles Zelenko. O texto original informa que as indicações ao Nobel da Paz podem ser feitas por qualquer pessoa e que, no caso de Zelenko, foi feita por um grupo que se descreve como formado por “médicos, farmacêuticos, técnicos de emergência médica, veterinário, funcionário de empresa de medicamentos, toxicologistas, virologistas, imunologistas, químicos, biólogos, estudantes nas profissões acima, enfermeiras” e que “outros profissionais de hospitais e de saúde, jornalistas, altos funcionários do governo podem ser membros”.
O site The Internet Protocol tem Vladimir Zelenko no topo da lista dos membros da equipe. Conteúdo parecido, mas sem informar que um grupo muito amplo de pessoas ou entidades pode fazer indicações ao Nobel da Paz, foi publicado no site norte-americano America’s Frontline Doctors. No dia 15 de maio, o conteúdo foi reproduzido pelo site Aliados Brasil e, no último dia 27, compartilhado no Twitter pelo músico Roger Moreira.
Por que investigamos?
Em sua quarta fase, o Projeto Comprova investiga conteúdos possivelmente falsos ou enganosos sobre a pandemia que tenham alcançado alto grau de viralização nas redes sociais. O tuíte de Roger Moreira teve 4,5 mil interações no Twitter até a tarde desta terça-feira (8) e conteúdo similar foi compartilhado em mais de 100 publicações no Facebook.
Ao afirmar, sem comprovação, que Vladimir Zelenko foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, transmite-se a ideia de que a sua defesa do uso de medicamentos como hidroxicloroquina no combate à covid-19 tem respaldo internacional, a ponto de ele disputar o mais prestigioso prêmio mundial. Além de não ser possível saber se a informação é verdadeira, uma eventual indicação não representaria consenso ou mesmo apoio em larga escala à sua tese, visto que os critérios para a realização de indicações previstos nos estatutos do Nobel são bastante abrangentes. Informações semelhantes já haviam sido verificadas pelos sites E-farsas e Boatos.org, bem como pelo Estadão Verifica, que chegaram às mesmas conclusões.
Importante afirmar que não há comprovação da eficácia desses medicamentos. Apesar disso, a circulação de textos com informações falsas ou enganosas se proliferam pelas redes, contribuindo para a desinformação e colocando em risco a saúde da população.
Em 17 de julho do ano passado, a equipe do Comprova apurou que era enganoso o texto publicado em maio do mesmo ano no site Sappno e compartilhado por páginas do Facebook como Aliança pelo Brasil e Lava Jato Notícias. O conteúdo fazia crer que um estudo havia comprovado que o uso de hidroxicloroquina e azitromicina era “seguro” e curava 98,7% dos pacientes. Na verdade, a metodologia usada é questionável, uma vez que não permite conclusões de causa e efeito em relação ao uso do medicamento e o tratamento da covid-19.
E, em 4 de janeiro deste ano, o próprio autor do estudo, Didier Raoult publicou uma carta para o Centro Nacional de Informações sobre Biotecnologia, da França, admitindo que a droga não reduzia as mortes por covid-19. Dias depois, em 18 de janeiro, Raoult voltou atrás e usou a conta no Twitter afirmando que o seu estudo comprovou, sim, a eficácia do medicamento.
Em 25 de maio deste ano, o Comprova apurou que são enganosas as afirmações de um médico cirurgião plástico sobre a eficácia da cloroquina no “tratamento precoce contra a covid-19”.
Enganoso, para o Comprova, é qualquer conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; e o conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Texto produzido pelo Comprova, coalizão de veículos de imprensa para verificar conteúdo viral nas redes sociais. Investigado por: Gazeta do Sul, Correio da Bahia e Correio Braziliense. Verificado por: Jornal do Commercio, Folha de S. Paulo, O Popular, Correio de Carajás, UOL, Band News FM e O Estado de S. Paulo.