Entrevista

"Formar leitores é formar a democracia", diz o ativista literário José Castilho

Castilho detalha a legislação de estímulo à formação de leitores no país, e defende o direito à leitura como fundamental para o exercício dos direitos democráticos

Fábio Lucas
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Fábio Lucas
Publicado em 09/04/2023 às 7:00 | Atualizado em 19/04/2023 às 1:19
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José Castilho é doutor em Filosofia e foi diretor da Editora Unesp por quase 30 anos, diretor da Biblioteca Mário de Andrade e secretário-executivo do Plano Nacional de Livro e Leitura (PNLL) - FOTO: Divulgação

Um dos mais reconhecidos ativistas literários do país, José Castilho Marques Neto possui até uma lei apelidada com seu nome, aprovada no Congresso e sancionada pelo presidente da República, em 2018. Doutor em Filosofia, foi diretor da Editora Unesp por quase 30 anos, diretor da Biblioteca Mário de Andrade, uma das mais importantes de São Paulo, e secretário-executivo do Plano Nacional de Livro e Leitura (PNLL). Nesta entrevista ao JC, José Castilho detalha a legislação de estímulo à formação de leitores no país, e defende o direito à leitura como fundamental para o exercício dos direitos democráticos. “No mundo do trabalho ler é requisito básico para a absoluta maioria dos trabalhadores e vai muito além da decifração de códigos e caracteres”, aponta, realçando que lemos o tempo todo no mundo contemporâneo.


Fábio Lucas - O que é o PNLL?

José Castilho - O PNLL – Plano Nacional de Livro e Leitura, construído em 2006 e implantado até 2010, é um verdadeiro pacto social (cultural e educacional) em torno do objetivo de transformarmos o Brasil em um país de leitores e leitoras. Compreende a formação leitora como uma construção social, parte necessária do nosso desenvolvimento sustentável. É a única saída viável para sairmos da taxa vergonhosa e excludente de termos apenas 12% da população com capacidade de leitura plena, conforme dados do INAF/2018. Desde que surgiu buscou ser uma política de Estado, supragovernamental e suprapartidária, porque todos sabemos que formar um país leitor é tarefa de gerações. O PNLL busca a democratização do acesso ao livro e à leitura, principalmente pelas bibliotecas de acesso público; a formação de mediadores de leitura que facilitem este acesso; o reforço ao valor simbólico do livro como um bem comum e um direito de todos os cidadãos e cidadãs; o apoio à economia do livro que começa com o autor, passa pelas editoras, livrarias e distribuidoras até chegar às mãos do leitor

Fábio Lucas - O que representa para escritores, editores, livreiros e leitores?

José Castilho - Pensado e executado, quando isto foi possível nos últimos 17 anos, como um projeto aglutinador e abrangendo todos os segmentos do livro e da leitura, entendo que o PNLL representa o caminho seguro, confiável, fruto da reflexão e da prática de todos e todas que formaram e formam leitores e leitoras no Brasil. Nele cabem os escritores, os editores, os livreiros, os bibliotecários, os distribuidores, todos convergindo para o principal personagem dessa saga literária: o leitor/a.

Fábio Lucas - E o que é preciso para que sua implantação aconteça?

José Castilho - Para sua implantação como política de Estado, já temos a Lei 13.696/2018, da Política Nacional de Leitura e Escrita/PNLE, que impõe a construção de PNLL decenais, com base em todos os princípios, conceitos e exemplos do PNLL implantado a partir de 2006. Claro que isto só acontece com vontade política de um governo democrático e que busca a equidade social do país.

Fábio Lucas - O mercado editorial mudou muito nas últimas décadas, com muito mais editoras pequenas e publicações independentes. Como o PNLL se atrela a essas mudanças?

José Castilho - Acompanhei como editor e pesquisador toda essa transformação, desde a composição em chumbo/linotipo, até a textualidade virtual do e-book. Ao mesmo tempo presenciei/vivenciei as mudanças operadas nas editoras e livrarias com os conglomerados financeiros tomando o lugar das editoras tradicionais, assim como das reviravoltas do comércio livreiro e, até, a tentativa de substituir profissionais livreiros, que orientavam os clientes, por máquinas. Tudo esteve/está em ebulição desde o final dos anos 1990. Entendo que se houve mudanças que vieram para ficar, há outras transitórias que passarão. Uma única coisa não muda: toda a cadeia do livro necessita de leitores. E é isso que o PNLL, agora sustentado pela Lei da PNLE, tem como objetivo: formar leitores. É exatamente isso a grande ligação e necessidade do PNLL decenal que agora se desenha no horizonte. E toda a cadeia deveria entender isso, fomentando-o e exigindo sua instalação.

Fábio Lucas - O sr. considera imprescindíveis os profissionais dedicados ao fazer do livro. Na sua opinião, esses profissionais poderiam ser mais valorizados no Brasil? De que forma?

José Castilho - Seguramente deveriam ser mais valorizados! Quando comecei na indústria editorial, no final dos anos 1970, o que me respondiam de formação profissional é que aprendíamos “com o umbigo no balcão”. Pouco a pouco começou a existir escolas livres de formação, eu mesmo projetei e implantei na Fundação Editora Unesp a Universidade do Livro. Mas, seguramente a boa formação, que é o primeiro passo para a valorização profissional, tem que vir a ser um programa que se incorpore à política pública voltada à profissionalização qualificada e dignamente remunerada: formar e qualificar, com profissão dignamente reconhecida, todos aqueles dedicados à indústria editorial e ao comércio livreiro. E vou mais além. É preciso revalorizar e formar melhor para os tempos atuais todos os outros profissionais do livro e da leitura, igualmente imprescindíveis, como os bibliotecários, os agentes culturais, os professores, entre tantos outros que são profissionais mediadores da leitura e formam cotidianamente as pessoas, sejam crianças, jovens, adultos e velhos.

Fábio Lucas - A regulação do mercado editorial é necessária? Por que?

José Castilho - A regulação se impõe quando relações produtivas e distributivas começam a se perpetuarem de maneira a impedirem o desenvolvimento saudável de um ou mais setores. O desarranjo provocado por forças econômicas poderosas que muitas vezes desconhecem as características peculiares do produto que produz e vende, o livro, torna a produção e o mercado sem condições mínimas de uma concorrência mercantil saudável e benéfica para todos – os empresários, os trabalhadores do setor e os leitores e leitoras. Um ambiente com regras marcadas pela desigualdade de tratamento, onde uma megaloja vende um lançamento com 50% de desconto e uma pequena livraria vende ao preço de capa ou, no máximo, com 10% de desconto, é um ambiente tóxico e impede seu desenvolvimento. Veja que não se fala de regular conteúdo, por óbvio em um país democrático, mas de estabelecer regras, direitos e deveres, para que a enorme bibliodiversidade de autores, títulos, temas, projetos e formatos editoriais seja possível e exequível economicamente para pequenas, médias e grandes editoras e livrarias. Como isso não está acontecendo “naturalmente”, projetos de lei como a Lei Cortez, inspirada na Lei Lang francesa, pode fazer acontecer “artificialmente” o que o movimento global do setor não conseguiu: criar condições justas de produção e circulação do livro.

Fábio Lucas - Qual o papel das editoras universitárias e das públicas na expansão do fazer literário e da leitura num país de poucos leitores e livrarias, em relação à quantidade de habitantes?

José Castilho - Você sabe que a maior parte de meu envolvimento editorial foi com a construção e consolidação da Editora Unesp, onde fiquei 27 anos. Com alguma experiência acadêmica, mas também editorial na Kairós Editora antes de ingressar como docente na Unesp, pude contribuir bastante, mas também aprendi muito e senti necessidade de pesquisar e me especializar mais para viabilizar o sonho da Unesp ter uma editora importante e que fizesse a diferença. Foi nessa caminhada que entendi que toda Universidade que se dedica a criar um projeto editorial, seja qual for, desde a preservação da ciência e cultura desenvolvida no seu território, ou a difusão qualificada do saber universal, como é o caso da Unesp, todos esses projetos editoriais são fundamentais para o desenvolvimento da presença e do fazer universitário e para o desenvolvimento do país. Um bom projeto editorial universitário é o melhor caminho, além da educação e formação de profissionais das ciências, para a Universidade dialogar com a sociedade dos nossos territórios e do país como um todo.

Fábio Lucas - Um projeto editorial universitário também pode ser uma espécie de retorno do investimento público realizado na Universidade?

José Castilho - É mais que uma retribuição ao que recebe em impostos, mensalidades ou apoios dessa sociedade, é um compartilhamento de saberes, de artes, de cultura literária e ensaística. Desde o final dos anos 1980, as editoras universitárias, reunidas em torno da Associação Brasileira de Editoras Universitárias (ABEU), promove a profissionalização das suas associadas. Quando todas as editoras universitárias brasileiras conseguirem conquistar o conceito, dentro de suas universidades, de que publicar/editar é uma atividade finalística da academia, teremos um país, uma educação, uma ciência ainda melhores no Brasil. Porque ela estará permeada por uma comunicação umbilical com a população a que serve, inclusive contribuindo maciçamente para a formação de leitores e a valorização da literatura e da leitura. As universidades brasileiras, que estão passando ainda por tantos problemas, e após os ataques da extrema direita no último governo negacionista, deveriam colocar na sua recomposição esta meta: fortalecer e profissionalizar suas editoras e seus projetos editoriais. Cumpririam melhor seus objetivos fundamentais de contribuição para um Brasil autônomo científica e tecnicamente, mas igualmente democrático e equânime na boa informação e formação de seus cidadãos e cidadãs.

Fábio Lucas - O que é a Lei Castilho, sancionada em 2018?

José Castilho - A apelidada Lei Castilho, para minha honra e gratidão a todos e todas que assim a chamam pelo país afora, é a Lei 13.696/2018 que instituiu a Política Nacional de Leitura e Escrita/PNLE, primeira lei a reconhecer o direito humano à leitura e o dever permanente do Estado brasileiro estabelecer uma política supragovernamental e suprapartidária para construir um país de leitores e leitoras. A lei é fruto do passado recente representado pelo PNLL, mas também de décadas de lutas anteriores de homens e mulheres que passaram a vida toda criando, fomentando, impulsionando programas e ações, públicas e privadas, para formar um Brasil leitor!

FÁBIO LUCAS - Em que difere do PNLL, e como anda sua aplicação?

José Castilho - Sua diferença do PNLL e tantos outros programas descontinuados pelos poderes públicos, é que estabelece, nos marcos legais e legítimos, a obrigação do Estado em cuidar e desenvolver a formação de leitores e leitoras de maneira permanente. Não se trata mais de convencer governos a realizarem programas de formação de leitores buscando determinados objetivos, mas de exigir o cumprimento de uma lei aprovada por unanimidade no Congresso Nacional. A lei 13.696/PNLE, ou lei Castilho, absorveu e se baseia em todos os conceitos fundamentais, os objetivos e os modos de fazer democraticamente do PNLL, construído por todos nós e pela experiência acumulada. E seu principal resultado é a determinação explícita de que o Estado brasileiro, liderado pelo MinC e pelo MEC, deverá criar a cada dez anos Planos Nacionais de Livro e Leitura/PNLL, vocacionados para cumprir os objetivos da lei, com metodologia inclusiva, mas sempre atualizado com os avanços tecnológicos e conceituais do livro, da escrita, da leitura e das bibliotecas. Neste sentido, podemos afirmar que a lei é conceitual, programática, estabelece procedimentos democráticos e inclusivos para planos necessariamente aplicados à realidade, atualizados no tempo em que atuam e com metas estabelecidas para serem cumpridas a cada dez anos.

FÁBIO LUCAS - Como a literatura poderia ter maior participação na educação dos brasileiros?

José Castilho - De maneira geral, se pensarmos numa perspectiva temporal, avançamos muito nos modos e metodologias aplicadas à educação de nossas crianças e jovens para com o uso da literatura nas escolas. Até alguns anos atrás, era praticamente privilégio das escolas de vanguarda o incentivo da leitura literária concebida fora dos exercícios gramaticais. O uso utilitarista da literatura para exercícios de aprendizagem do português culto, escorreito, e suas inúmeras regras; a obrigatoriedade de autores canônicos, fundamentais para a cultura escrita da nação, mas distantes da vida dos estudantes; os procedimentos exclusivamente escolares para com os livros literários, que incluíam a biblioteca escolar como lugar de castigo e não de prazer e fruição artística e literária; tudo isso é hoje corretamente criticado e os usos e práticas da literatura como incentivo ao prazer de ler, cada vez ganham mais adesões nas escolas brasileiras.

FÁBIO LUCAS- O panorama, então, é mais favorável à literatura nas escolas?

José Castilho - Se conceitualmente eu vejo a leitura literária nas escolas ganhar esse espaço, por outro lado, persistem problemas estruturais que ainda pesam fortemente para que a situação perversa anterior persista, quiçá na maioria das escolas. Me refiro, basicamente, à insuficiente formação de professores e professoras no que tange às imensas capacidades transformadoras que a literatura e a poesia poderiam realizar transversalmente às outras disciplinas; me refiro à falta de lucidez das autoridades educacionais de que a biblioteca escolar ativa, influente, atualizada com comportamentos e conceitos contemporâneos deve ser o centro aglutinador e de referência de aprendizagem de toda a comunidade escolar, dos docentes e funcionários aos alunos. Apenas nesses dois pontos já conseguimos vislumbrar o tamanho da estrada que o país precisa percorrer para poder usufruir os benefícios que a leitura literária faria à formação dos nossos estudantes.

FÁBIO LUCAS - E como percorrer esse caminho?

José Castilho - A bibliografia para isso, nacional e internacional, é farta. O MEC criou o maior programa de distribuição de livros didáticos do planeta, o PNLD. Quando funcionou, o Programa Nacional da Biblioteca Escolar - PNBE, que espero volte a existir, inundou as escolas de obras literárias de alta qualidade, absorvendo literaturas regionais e representativas da diversidade cultural do Brasil. No entanto, pela precária formação dos dirigentes educacionais e dos docentes no desenvolvimento da literatura para as crianças e jovens, em partes expressivas do país o que se vê são caixas de livros fechadas e inacessíveis à comunidade escolar. Urge formar os docentes para essas possibilidades e abrir as caixas, criar verdadeiras bibliotecas escolares dirigidas por profissionais, renovando-as constantemente para que a literatura se derrame, democraticamente e eficazmente para todos e todas nas escolas, formando leitores e leitoras críticos que exerçam seus direitos e deveres de cidadania.

FÁBIO LUCAS  Na sua visão, a ampliação do acesso à leitura e seu incentivo na população escolarizada, deve ser algo essencial para a democracia?

José Castilho - Essa pergunta resume todas as anteriores, porque o exercício de formar leitores e leitoras plenos é um exercício político de construção da democracia que compreende, além do ambiente político da vontade da maioria, a busca pela equidade social, econômica, cultural, educacional e de todos os direitos fundamentais da pessoa humana. Não vivemos num mundo ágrafo, onde a palavra não exista ou não tenha significado ou poder, ao contrário. É senso comum que vivemos na era do conhecimento e da informação e todo este mundo se comunica pela palavra, na sua maioria escrita. Lemos o tempo todo no mundo contemporâneo, desde a leitura utilitária para tomarmos um transporte público ou uma bula de remédio até textos literários fragmentados nos posts dos gadgets eletrônicos e livros inteiros físicos ou digitais. No mundo do trabalho ler é requisito básico para a absoluta maioria dos trabalhadores e vai muito além da decifração de códigos e caracteres. Portanto, quando nos deparamos com uma situação limite, como a que estamos no Brasil segundo o Inaf/2018, em que 88% do nosso povo tem alguma dificuldade de compreender plenamente o que lê (e por extensão o que escuta e vê), me parece evidente que o déficit de cidadãos leitores significa um déficit antes de tudo de nossa possibilidade democrática. Uma pessoa que não consegue ler o mundo atual e todas os artifícios dos poderosos que querem mantê-lo fora dos círculos do conhecimento, mais conhecida como ignorância, não é uma pessoa que exerce seus direitos democráticos e se torna, para nossa infelicidade e pesar enquanto nação, alguém manipulável para crenças do tipo “a terra é plana”, “vacina de Covid o transformará em jacaré”, entre tantas barbáries manipuladoras da boa-fé e da alma brasileira castigada por séculos de autoritarismo violento e de exclusões infames. Formar leitores e leitoras é formar a democracia brasileira.

 

 

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