Caso Itambé

Um memorial para não esquecer Pretinho

Edvaldo da Silva Alves, jovem morto por PMs, ganhou do irmão um lugar cheio de afeto, lembranças e resistência

Ciara Carvalho
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Ciara Carvalho
Publicado em 24/11/2017 às 7:09
Foto: Sérgio Bernardo/JC Imagem
Edvaldo da Silva Alves, jovem morto por PMs, ganhou do irmão um lugar cheio de afeto, lembranças e resistência - FOTO: Foto: Sérgio Bernardo/JC Imagem
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É uma casa muito pequena. Verde e branco na fachada. Rua simples de uma periferia no interior. Mas nela cabe um mundo de afetos. Canto feito de resistência, coragem, e, pode-se dizer, devoção. O número 17 da Rua Júlio Vieira César, no bairro Jardim Bela Vista, em Itambé, na Mata Norte do Estado, abriga uma história que não pode ser esquecida. O lugar existe para isso. Para manter viva a indignação diante de uma tragédia. Mas também para eternizar a alegria de um jovem de vida breve, brutalmente interrompida por uma bala de borracha disparada pelas mãos de um policial militar.


A guitarra pendurada na parede, logo na entrada, diz muito sobre quem era Edvaldo da Silva Alves. A música era a vida dele. Onde chegava já começava a tocar. “Ele era a animação em pessoa”, resumem, em coro, os amigos. Não à toa todas as selfies emolduradas carregam o sorriso largo do menino-músico. São 175 fotos, a maior parte tirada do celular, sozinho, com os amigos, com as namoradas, feliz da vida. Foi para não deixar essa alegria ser esquecida que José Roberto da Silva Santos fez uma promessa. Criar um memorial para o irmão, para que todos saibam quem foi Pretinho, como o rapaz era conhecido entre os seus.

Foi no dia 17 de março deste ano que a história do jovem, que desde pequeno respirava música, teve uma interrupção brusca, chocante. As cenas de Edvaldo sendo arrastado e agredido, com a perna banhada em sangue, correram a internet. Poucos flagrantes de abuso policial causaram tanta indignação.

Não foi só o disparo dado praticamente à queima-roupa. A forma brutal como Edvaldo foi tratado pelos policiais, após ter a perna atingida pela bala de borracha, é revoltante. Corpo jogado na caçamba da viatura, vida se esvaindo, gritos de “mataram o rapaz”.


O jovem de 21 anos protestava contra a insegurança em Itambé quando, no meio da multidão, o capitão Ramon Tadeu Silva Cazé aponta para Edvaldo e sentencia: “Você vai ser o primeiro a levar o tiro?” Imediatamente dá a ordem, cumprida pelo soldado Ivaldo Batista de Souza Júnior. O que se viu na sequência é de uma crueldade tamanha que foi impossível silenciar. Vozes incrédulas ecoaram muito além de Itambé.

Durante longos e sofridos 25 dias, Edvaldo lutou contra a morte num leito de UTI do Hospital Miguel Arraes, em Paulista, para onde foi transferido após o tiro. Na madrugada do dia 11 de abril, os aparelhos foram desligados.

Em meio a uma família humilde, sozinha e destroçada, José Roberto da Silva Santos, irmão mais velho, precisou ser gigante. A mãe, Maria Sebastiana da Silva, 51, desabou. Não teve forças para acompanhar o velório do filho que fez uma cidade inteira chorar. Também se nega a conhecer o memorial. Já quis ir. Mas novamente faltou-lhe forças. As fotos do filho sorrindo, tocando violão, ainda é um peso insuportável de carregar. O violão, inclusive, foi presente de Sebastiana. “Ele amava. Carregava para todo canto”, recorda a mãe.

A foto de Edvaldo tocando violão na praça é a preferida de José Roberto. “É como se eu tivesse vendo ele, agora, na minha frente, tocando a música de que mais gostava”, diz. O irmão enfrentou até a resistência da família para dar vida ao memorial. “Eles achavam que ia ser um lugar triste, que não ia me fazer bem.”

ALEGRIA QUE ILUMINA

Tristeza é tudo o que o lugar não tem. Num espaço mínimo de uma garagem, José Roberto conseguiu impregnar as três paredes não só de fotos. Transformou o canto numa prova de amor incondicional. Quando fala da alegria do irmão, o lugar se ilumina. Para cumprir a promessa, feita logo após a morte de Edvaldo, precisou se apertar na pequena casa dada pela mãe. Vive numa sala/cozinha/quarto/banheiro. E, o mais importante, cercado da lembrança de Pretinho.


É uma dedicação que precisou desconhecer o medo. Durante todo o tempo em que Edvaldo ficou internado, no sepultamento do rapaz e em todos os dias que se seguiram ao enterro do irmão, José Roberto não se calou hora nenhuma. Cobrou do Estado a prisão dos policiais envolvidos no crime. Recebeu a indenização, paga pelo governo de Pernambuco, sem deixar de exigir o que para ele e sua família é o mais importante: a punição dos culpados.

O capitão Ramon, o soldado Ivaldo e outros dois policiais que participaram da ação foram denunciados pelo Ministério Público de Pernambuco por homicídio doloso, quando há a intenção de matar. No caso do oficial, ele também foi enquadrado por crime de tortura, pela forma desumana como arrastou e agrediu o jovem ensaguentado.

Todos os PMs respondem ao processo em liberdade. Caso a Justiça decida pelo pronunciamento dos acusados, o caso só irá a júri popular no próximo ano. “Só vou descansar quando vê-los atrás das grades. Demore o tempo que for, não vou desistir. Eles mataram meu irmão. E precisam pagar por isso.” Esperar, esperar, esperar. Para José Roberto e sua família, tem sido o mais difícil.

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