É difícil não ficar parado olhando o Sol se pôr em frente ao casebre de Lindaci e Bodocó, ela 28, ele 38, vivem perto da PE-300, em Manari, no Sertão. O céu torna-se dramático, vermelho, laranja, rosa, ainda tem espaço para um azul que vai ficando mais intenso, uma luz exibida que assume as mesmas cores e modifica o que consegue tocar. Tinge de laranja e rosa as árvores e o lixo espalhado atrás da construção, um quarto e sala de teto muito baixo habitado ainda por José Sizo, 5, e Maria Valdemira, 1 ano. Dormem todos na mesma cama. No terreno em frente, amplo, flores miúdas e roxas contrapõem-se a embalagens de plástico e restos de comida. A chuva deu conta de esverdear o resto. “Que flor é essa, Lindaci?” A moça sorri como quem pensa que aquele é um interesse meio besta, carrega no colo a filha pequena que está com o rosto sujo de farinha e ensaia chorar. “Sei não, é um mato que cresce aqui.” Entra na casa e dá as costas para o Sol, para as cores e as flores, para o céu dramático. Não há espaço para a contemplação. Limpa a boca de Maria, senta-se no batente da porta. É hora da menina mamar.
Lindaci e as irmãs Odaci, 25, e Joeci, 23, são as únicas sobreviventes dos 16 filhos paridos por Cícera Joventina, 61. Cresceram ali, sem casa e terra própria, na cidade que não muito mais tarde ganharia o título de A Pior do Brasil. Mas as coisas, disseram os números, melhoraram. Agora, Manari é apenas A Pior de um Estado que abriga 184 municípios, alguns deles sem musculatura para ser ao menos povoado. A família, como centenas de outras que nasceram naquela região bonita, castigada bem mais pela má-fé política do que pelo Sol, faz parte dos dados midiáticos e cruéis divulgados recentemente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). No ranking do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), Manari é a única em Pernambuco a possuir um ponto vermelho, indicando seu lugar de “muito baixo desenvolvimento” (entre 0 e 0,499): cravou 0,487. Lindaci, Bodocó (como o agricultor José Vieira de Melo é conhecido), José Sizo e a pequena Maria do rosto sujo de farinha são os quatro dígitos desse índice: os adultos são semianalfabetos, perderam filhos com poucos meses de nascidos, não estão empregados, não possuem casa nem renda própria (somente R$ 206 ao mês pagos pelo Bolsa Família). Os mais novos só foram atendidos por um serviço médico quando nasceram, na maternidade. Depois disso, foram levados até uma rezadeira todas as vezes em que ficaram doentes. Os pais confiam mais nela do que nos médicos do município.
Quando a chuva acontece e a terra permite o plantio e a colheita, Bodocó e Lindaci vão trabalhar ali perto, na fazenda de José Vieira Pereira, ex-prefeito da cidade (de 1996 a 2004) conhecido por todos como “Santo Vieira” (título flexionado para Santos em sua segunda e vitoriosa candidatura a prefeito). Lá, conseguem tirar para si algumas sacas de milho e de feijão. Outra parte fica para o dono da terra, um esquema comum no Sertão, onde o “pagamento” é a própria comida. “Faz tempo que não vou na roça de Santo, foi muita seca, não crescia nada”, comenta Lucilene, que também usa o termo divino para se referir ao ex-gestor, condenado em 2010 pelo Tribunal de Contas da União (TCU) a devolver R$ 126.225 ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O dinheiro foi transferido pelo governo federal para a compra de um ônibus escolar, o que não aconteceu (acórdão nº 4875/2010, processo 015.181/2008-6). Santo também esteve envolvido, em 2006, na Operação Carcará Negro, da Polícia Federal, na qual seis pessoas de Manari foram presas por conta do desvio de quase R$ 2 milhões da prefeitura. Existem diversos outros processos ligados a ele, que declarou para a Justiça Eleitoral em 2008 possuir uma casa residencial no Centro de Manari (R$ 30 mil) e uma propriedade de 74 hectares, valendo R$ 80 mil, no Sítio Serrote, justamente onde está a casa de Lindaci e Bodocó.
Devendo duas prestações do conjunto de mesa e quatro cadeiras verdes de plástico (R$ 320 em dez vezes) e cerca de R$ 700 da moto de segunda mão comprada por R$ 1.600, Bodocó não relaciona sua pobreza material e física à pobreza gerencial e ética daqueles que historicamente estiveram à frente de sua cidade. Ele e a esposa são adeptos de um “pragmatismo metafísico” comum entre aqueles que, sem nunca terem experimentado uma vida de conforto e respeito, preferem atribuir qualquer possível melhoria futura a Deus. A questão é que, além de esta atitude divino-pragmática não mobilizá-los politicamente, ela põe continuamente a família em risco. Um exemplo é o próximo filho do casal, ainda na barriga de Lindaci, que não tem data para chegar simplesmente porque nem Bodocó nem ela fazem ideia dos meses de gestação. A mãe conta que começou um pré-natal, mas foi apenas à primeira consulta. “Pediram um exame para ver a criança, mas custava R$ 50. Eu não tinha esse dinheiro.” O exame é um ultrassom, não realizado nem no único hospital da cidade, a Casa de Saúde João Paulo II, nem em um dos três postos de saúde do município. Foi pedido por um profissional médico que sabe da realidade local, mas limitou-se a cumprir tecnicamente sua obrigação. Enquanto isso, a barriga de Lindaci, vai, pragmaticamente, crescendo.
SOB O MOSQUITEIRO
O filho que não tem data esperada para chegar vai se unir, a princípio, ao resto da família no momento de dormir. Será mais um sob o grande mosquiteiro rosa que impede que a maior parte das muriçocas marquem a pele. Não há até agora previsão para a compra de berço: com as dívidas e o trabalho não regular, o casal deixou de adquirir qualquer bem – os únicos são itens como cuscuz, galinha e farinha, que compõem uma também rara feira semanal. Nela, Lindaci gasta, quando pode, o mesmo valor que usaria na ultrassonografia. “Tô correndo de prestação. Eles chegam aqui, convencem você a comprar. Depois, vem outra pessoa fazer a cobrança. Quando você não tem dinheiro, partem para a briga”, diz Bodocó. Qualquer crítica às compras e dívidas do casal calam-se frente à dignidade que Lindaci demonstra ao oferecer uma cadeira para a visita sentar ou à necessidade de um transporte pessoal – já que quase inexistente no município – para buscar trabalho. Ou levar os filhos na rezadeira.
Lindaci tem planos: quer colocar Sizo na escola no ano que vem. Poderia ter matriculado neste, mas não conseguiu. “Minhas condições tão muito fracas. Eu não ia mandar ele para aula sem roupa, sem calçado. Não vou ter vergonha de lhe dizer, foi por isso mesmo.” Agora, com a terra temporariamente saciada pela chuva, seu marido vai poder trabalhar alguns dias para o próprio pai, que paga diária de R$ 25 a Bodocó para que ele arranque as favas e colha o milho do pequeno roçado que mantém. Começa às 7h, termina às 12h, volta às 14h, encerra às 17h30. Leva milho para casa e põe no mesmo dia para cozinhar à lenha. É várias vezes o café da manhã do dia seguinte. Acordam cedo, comem, jogam a espiga no quintal e voltam para o roçado para plantar novamente a própria refeição.
Com a quinta série completa, mas dominando apenas a escrita do próprio nome (fenômeno mais difícil de ser identificado mesmo por um índice complexo como o do Pnud, que a entende como alfabetizada), Lindaci diz que tem sorte: ali, no Sítio Serrote, perto das casas de outros familiares, não precisa pagar aluguel. A casa na qual vive com o marido é emprestada por uma tia. A família inteira vive nas terras de Santo Vieira. Acreditam que é melhor assim: no período da seca intensa, foram morar na “rua”, como são chamados os núcleos mais urbanizados das cidades do interior. Lá, o casal precisava desembolsar quase R$ 140 para viver em um local menos agreste. Ficaram seis meses e, com a chuva, voltaram. Agora, esperam, dentro da pragmática divina, que a chuva não volte a sumir e que o próximo filho permaneça no mundo, ao contrário dos que morreram. O primeiro faleceu com apenas 21 dias. O segundo, com dois meses. A mãe conta que foi depois do teste do pezinho. O corte minúsculo feito no pé da criança, ao que parece, infeccionou. Algo banal, mas que o levou à morte. “Ficou tudo preto, ele foi ficando mole. Levei na rezadeira, mas já não tinha jeito.” Desassistidos pela má-fé política, os pais acham que foi vontade de Deus.
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