DEDICAÇÃO

Médico pernambucano viaja pelo mundo operando mãos de crianças

O cirurgião Rui Ferreira integra missões humanitárias que realizam cirurgias para atender pacientes com deformidades e mutilados de guerras

Adriana Victor
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Adriana Victor
Publicado em 28/08/2016 às 7:00
Foto: Diego Nigro/JC Imagem
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O itinerário de viagens internacionais do pernambucano Rui Ferreira, desde 2004, é extenso e inusitado: no início de 2016 ele esteve no Irã; em setembro visita a região da Palestina. Tem viagem marcada para o Camboja e o Líbano. Jordânia, Vietnã, Egito, México, Chile e Colômbia também entram na lista de lugares visitados. O que define os roteiros é a necessidade que cada país tem para receber as missões humanitárias das quais o médico faz parte. São mutirões de cirurgias reparadoras, especialmente voltadas para crianças e adolescentes com deformidades nos membros inferiores e superiores, principalmente as mãos.

Em parceria com a ONG francesa La Chaine de L’Espoir (A Corrente da Esperança), 74 missões já foram realizadas. “Na Jordânia, fronteira com Síria, os mutirões atendem crianças que estão nos campos de refugiados, mutiladas pelos conflitos”, afirma o médico. Nos anos 1980, o Irã teve atenção especial por causa dos oito anos de guerra com o Iraque - o país já recebeu 12 missões. 

No Egito são comuns os casos de deformidades provocadas por partos mal conduzidos. “O parto é feito de qualquer jeito quando eles descobrem que o filho é uma menina. A mulher não tem nenhuma importância na cultura deles”, testemunhou. “E quatro dos meus cinco filhos são mulheres. Isso me chocou demais.” A Colômbia já recebeu 25 missões. “É o país com maior quantidade de deformidade congênita das mãos no mundo, por causa do veneno usado para combater plantações de coca”, revela.

 

MÉDICO POR PAIXÃO

O médico brasileiro que se junta a especialistas de diversos países para operar mãos de crianças mundo afora é do Sertão de Pernambuco. Nascido em Sertânia, a mais de 300 quilômetros do Recife, ainda muito novo ele vendeu roupas e trabalhou numa padaria para ajudar no sustento da família. Rui Ferreira buscou recuperar na juventude os estudos que não pôde ter nos primeiros anos de vida. E deu conta. 

Aprovado no conceituado ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), tentou ser militar, mas não se acostumou aos rigores da carreira: “Foi um choque”, confessa. Optou depois por economia, ganhou bolsa para estudar na então Tchecoslováquia. Armou-se de mala e cuia. Porém, uma enchente que atingiu o Recife deixou o estudante ilhado na Madalena, bairro da Zona Norte da cidade – ele perdeu o voo.

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A medicina veio quase que por acaso. Passando férias em Caruaru, começou a ajudar os amigos que fariam vestibular a estudar, já que tinha certa intimidade com números. Também apaixonou-se por uma moça de família bem mais rica do que a dele. Para conseguir a permissão para o namoro, fez vestibular para ser doutor. “Todo mundo me dizia: a mãe dela só deixa namorar se for estudante de medicina”, lembra. Pois bem, Rui Ferreira virou doutor.

“Fui fazer medicina num momento crítico do Brasil. Entrei na faculdade em 1965, um ano depois do golpe militar.” Durante o curso, descobriu que tinha habilidade com as mãos. “Eu não sabia porque fui um menino do interior”, conta. “Meu sonho era um dia ter dinheiro pra comprar um cavalo e correr vaquejada. Foi o que fiz com o primeiro dinheiro que ganhei na vida. Paixão é paixão.”

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Curso concluído no Recife, em 1971, ele foi ao Rio de Janeiro especializar-se em cirurgia – geral, plástica e das mãos. A formação seguiu rumo internacional com passagens pela França, China e Japão. 

De volta a Pernambuco, aplicou no Recife o que havia aprendido lá fora: cirurgias reparadoras, reimplantes, transferências de dedos do pé para a mão, cirurgia do plexo braquial (conjunto de nervos da região do pescoço que movimenta braços e mãos).

O sertanejo fala quatro línguas, além do português: “Aprendi pela necessidade de estudar”. Hoje, aos 70 anos, divide a vida entre a sela do cavalo, ainda correndo vaquejada, e as cirurgias reparadoras em suas corridas pelos mundo. 

MUTIRÕES NO RECIFE

Ansiedade, apreensão, gratidão, dedicação, medo, alívio: está tudo ali nas salas de espera e recuperação de um pequeno hospital no Recife. As famílias assistem às suas crianças entrarem na sala de cirurgia. Esperam. Lá dentro está uma equipe formada por três franceses, um venezuelano, um norte-americano e sete brasileiros – Rui Ferreira é um deles. É a 33ªa ação humanitária que acontece no Brasil, todas elas no Recife, graças à parceira da ONG francesa com o Instituto SOS Mão Criança, do qual Rui é fundador, junto com o médico Mauri Cortez.

Na missão que acompanhamos, a maratona de cirurgias começou às 7h e seguiu até às 23h. Dois dias na mesma pisada, sem intervalo. Cirurgiões, anestesistas, enfermeiros, auxiliares – para nenhum deles há remuneração financeira. “A gente deixa de ganhar dinheiro fora daqui, suspendemos nossas atividades. A felicidade é poder ajudar”, diz a anestesista Andréa Galvão. A colega Camila Caminha interrompeu a licença maternidade, deixou em casa um bebê de 2 meses e enfrentou os dois dias da missão humanitária.

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Rui Ferreira explica como é feita a triagem dos pacientes para as cirurgias. “Na nossa especialidade, temos prioridades que são: independência para comer - então, a gente procura fazer uma mão que a criança possa comer sozinha; depois de conseguir levar a mão à boca, ela precisa fazer sua higiêne pessoal. Fazemos tudo para que se transforme numa pessoa autônoma”, diz. “Procuramos deixar independentes as crianças que são dependentes, pouco a pouco, com as cirurgias que fazemos.”

Cauã, 9 anos, recebe cuidados da mãe depois da cirurgia. Evânia Santos, auxiliar de serviços gerais, moradora do Ibura, bairro da periferia do Recife, está aliviada – ele tinha os dedos colados, o que a ciência chama de sindactilia. Encaminhado ao instituto por uma pediatra, foram quatro consultas até a cirurgia. 

Jênia Rodrigues, trabalhadora rural, veio de Betânia, Sertão do Piauí, com a filha Júlia, 5 anos. Foram 12 horas de estrada, viagem de ônibus. Aos 2, a criança foi ao quintal onde a família cozinhava doces num fogo a lenha. Sem que ninguém notasse, pegou em brasa viva de carvão, teve queimaduras de terceiro grau. Chegou a perder alguns dos dedos, as mãos ficaram fechadas. Um amigo pernambucano, o policial civil Luiz Carlos Leitão, já tinha ouvido falar no lugar onde crianças com deformidades nas mãos eram operadas gratuitamente.

Mãe e filha embarcaram para o Recife sem data prevista para a volta. O amigo policial acolheu as duas em sua casa, conseguiu marcar consulta e, enfim, a cirurgia gratuita. Jênia admite que, logo que soube da possibilidade da operação, ficou apreensiva, tentando não alimentar expectativas. “Já sofremos tanto, eu, ela e o pai dela.” Mas deu tudo certo. “Agora estou esperançosa e contente. Meu sonho é que ela faça tudo o que uma criança normal faz, como escrever”, afirmou. 

Alex Sandro Holanda, morador do Brejo da Madre de Deus, cidade do Agreste pernambucano, também nasceu com os dedos grudados. Foi operado por Rui Ferreira ainda criança. Hoje, aos 39 anos, agradece porque os seus dois filhos Catarina, 6 anos, e Lorenzo, 2, depois de diversas cirurgias, recuperaram-se do mesmo problema. Sobre Rui Ferreira ele diz: “É muito humano. Faz cirurgias de graça pra quem é carente”. 

Os quatro netos e cinco filhos, um deles estudante de medicina, poderiam aquietar Rui em sua casa - ou entre seus pacientes pernambucanos. As missões humanitárias, além de serem, em geral, em países distantes, não são remuneradas. “Preciso de pouco para viver”, responde rápido. Aos 70 anos, ele não parece nem perto de querer parar. “Quando a gente faz alguma coisa, não se sente velho. Não me pus uma data para parar. Enquanto estiver lúcido, com vontade e prazer de fazer coisas que pouca gente faz, enquanto eu puder ensinar o que sei, eu continuo.” O que o senhor leva de Sertânia, do Sertão, mundo afora? “Dizem que a gente sai do Sertão, mas o Sertão não sai da gente. Eu acho que a força que o sertanejo tem de sobrevivência, a vontade de viver.”

A próxima Missão Humanitária do SOS Mão Criança no Recife está marcada para acontecer entre os dias 16 e 18 de dezembro. Para consultas e informações, o telefone de contato é (81) 3217-2500. O instituto também recebe doações para ajudar a manter as  suas atividades.

Diário

A pedido da reportagem, Rui Ferreira produziu um diário em sua última missão humanitária, realizada no Irã. O relato registra dias corridos, de muito trabalho e total dedicação aos pacientes.

Missão Irã

Chegada

Depois de dois dias que saí do Recife, chego à Teerã com os outros missionários franceses e uma jornalista, filha de François Mitterrand (ex-presidente da França), que nos acompanha. São 3 horas da manhã? Às 9h começarão as consultas e sabemos de antemão?: são mais de 100 crianças. 

1º Dia

Na consulta atendemos 105 crianças com 54 indicações de cirurgia. Trinta e cinco foram marcadas, totalizando aproximadamente 72 horas de cirurgias, divididas em dois dias para dois cirurgiões. Resultado: nos dois dias, serão 18 horas para cada cirurgião. É um calculo que fazemos e que geralmente dá certo.

2° Dia 

Café às 6h, saída às 6h30. Começamos a operar às 8h e seguimos até às 23 horas. Foram 16 cirurgias. Havia uma recepção programada para nós médicos na Embaixada da França em Teerã, às 18h. Claro que não fomos.

 3º dia 

Mesma programação e mesmo número de cirurgias. Terminamos nossa jornada às 20h30. Uma jornalista da Paris Match faz reportagem sobre nossas missões. É comum ter algum atendimento paralelo, de pessoas importantes ligadas aos nossos anfitriões. Há dois anos operamos um 'star' iraniano, um rapper - foi o maior frisson no hospital. Hoje vou atender uma celebridade do Irã, atriz muito conhecida que teve um acidente de carro e está com uma paralisia.

Foto: Acervo Pessoal
O médico Rui Ferreira atendendo criança no Egito, observado por mulheres com roupas tradicionais - Foto: Acervo Pessoal
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Criança egípcia participa da missão humanitária para realização de cirurgia de deformidade nas mãos - Foto: Acervo Pessoal
Foto: Acervo Pessoal
Equipe de médicos estrangeiros integra missão de cirurgia - Foto: Acervo Pessoal
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As crianças são prioridade no tratamento de deformidade das mãos - Foto: Acervo Pessoal
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Regiões de guerras e conflitos recebem as missões humanitárias - Foto: Acervo Pessoal
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Países do Oriente Médio recebem missões humanitárias de cirurgia desde 2004 - Foto: Acervo Pessoal
Foto: Acervo Pessoal
A ONG La Chaine de l'Espoir (A Corrente da Esperança) é responsável pelas missões estrangeiras - Foto: Acervo Pessoal
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- Foto: Acervo Pessoal
Foto: Acervo Pessoal
Missão realizada na Colômbia - Foto: Acervo Pessoal
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As equipes formadas por estrangeiros se unem a profissionais locais - Foto: Acervo Pessoal
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A imprensa internacional registra a importância das missões - Foto: Acervo Pessoal
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Há lugares onde só se chega em aviões de pequeno porte - Foto: Acervo Pessoal
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As maratonas cirúrgicas chegam a durar mais de 15 horas - Foto: Acervo Pessoal
Foto: Diego Nigro/JC Imagem
Rui Ferreira operou o pernambucano Alex Sandro Holanda e seus dois filhos, Catarina e Lorenzo - Foto: Diego Nigro/JC Imagem
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As mãos de Catarina Holanda passaram pelas cirurgias de Rui Ferreira - Foto: Diego Nigro/JC Imagem
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Lorenzo Holanda nasceu com os dedos grudados, assim como sua irmã e seu pai - Foto: Diego Nigro/JC Imagem
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Rui Ferreira e os pacientes Lorenzo, 2 anos, e Catarina, 6 anos, que são irmãos - Foto: Diego Nigro/JC Imagem
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Rui Ferreira mostra os países por onde passaram as missões ligadas à ONG La Chaine de l'Espoir - Foto: Diego Nigro/JC Imagem
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Aos 70 anos, Rui Ferreira tem cinco filhos e quatro netos - Foto: Diego Nigro/JC Imagem

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