Saúde

Fernando Figueira: discípulos eternizam a lição sobre 'salário mental'

'Salário mental', segundo Figueira, é a maior recompensa que a medicina social, plantada no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), paga aos seus profissionais

Cinthya Leite
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Cinthya Leite
Publicado em 04/02/2019 às 7:39
Foto: Filipe Jordão/JC Imagem
'Salário mental', segundo Figueira, é a maior recompensa que a medicina social, plantada no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), paga aos seus profissionais - FOTO: Foto: Filipe Jordão/JC Imagem
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No segundo dia da série, que termina na terça-feira (5) e marca o centenário de nascimento do professor e médico Fernando Figueira, conheça o valor que ele dava ao trabalho e a importância de atuar também como voluntário.

Certamente a lição de mais excelência e abnegação que o professor e médico Fernando Figueira deixou para os discípulos foram os ensinamentos sobre “salário mental” – a maior recompensa que a medicina social, plantada no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), pagava aos seus profissionais. Em artigo publicado neste JC, no dia 30 de abril de 2010, o médico e ex-presidente da instituição Gilliatt Falbo, atualmente coordenador acadêmico da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS), relata o primeiro contato com o professor, que o apresentou a esse tipo de recompensa. “Para se compreender o valor dessa moeda se carece de consciência, amor, compaixão e muitas vezes de tempo. Tempo”, escreveu Gilliatt para explicar como o “salário mental” é aquele que só se presta para fazer o bem.

O médico Otelo Schwambach, 77 anos, um dos primeiros a fazer residência pediátrica com Figueira, relembra com carinho como o professor fazia menção a esse tipo de gratificação. “Ele dizia que todos nós precisamos ter o nosso salário mental, que recebemos sempre que fazemos aquilo que nos agrada e nos faz bem. O meu é ir a Chã Grande (município do Agreste de Pernambuco) todas as sextas-feiras. Na cidade, trabalho como voluntário num posto de saúde atendendo as crianças e suas famílias. Elas ficam extremamente felizes com essa assistência, que difere em nada da que dou aos meus pacientes do consultório particular. Estou certo de que é um trabalho que faz mais bem a mim do que a elas”, relata Otelo sobre a forma com que retribui todos os ensinamentos que recebeu do professor.

Otelo Schwambach definiu como salário mental ir a Chã Grande às sextas, atender pacientes de graça (Foto: Filipe Jordão/JC Imagem)

Também discípulo de Figueira, o pediatra Marcello Pontual, 76 anos, contemporâneo de Otelo, chegou ao Imip em 2 de janeiro de 1966. Desde então, nunca tirou o pé do instituto, do qual é voluntário até hoje. Pela admiração que tem pelo mestre e seriedade do trabalho realizado no Imip, continua a atender no Ambulatório de Nefrologia Pediátrica às segundas e quartas-feiras pela manhã. “O professor me deslocou para o serviço. Fui ficando por necessidade e depois veio uma paixão imensa pelo o que eu fazia”, conta Marcello, que também alimenta o seu “salário mental” às sextas, quando são realizadas as reuniões clínicas no Imip. “Tenho que retribuir à sociedade tudo aquilo que dela recebi em excesso. E faço questão de lutar para manter a ideia viva do professor, com foco no trabalho social que ele tanto valorizou”, acrescenta.

Exemplo

O pediatra João Guilherme Alves, 64 anos, diretor de Ensino do Imip, também só exala admiração ao falar sobre Figueira, de quem segue doutrinas desde os tempos de faculdade. “Já nos primeiros contatos com o professor, o encanto foi tamanho que nem sei explicar. Tive o privilégio de diariamente ele me chamar para conversar. Com ele, aprendi que não precisamos saber só de medicina. O professor era firme ao dizer que o médico tem o compromisso de conhecer a sociedade em que vive. Então, ele convidava profissionais de outras áreas para ministrar aulas”, diz João Guilherme. Ele conta que até dom Helder Camara (arcebispo emérito de Olinda e Recife) era convidado para conversar com os residentes. Apenas 30% do corpo docente, segundo recorda, eram compostos por médicos. “Os demais professores convidados eram sociólogos, antropólogos, economistas, psicólogos e filósofos”, diz João Guilherme sobre o pioneirismo de Figueira ao desenvolver uma reflexão interdisciplinar e crítica sobre o processo saúde/doença nas dimensões sociais, econômicas e políticas.

João Guilherme relembra o professor dizendo que todo médico tem o compromisso de conhecer a sociedade em que vive (Foto: Felipe Jordão/JC Imagem)

“Ele dizia que o médico que só sabe medicina sabe muito pouco. Por isso, deveria contar com conhecimentos humanísticos para se compreender as verdadeiras causas das doenças”, salienta João Guilherme, sem deixar dúvidas de que, para se sensibilizar à dor alheia e praticar a solidariedade louvada pelo professor, também é necessário se debruçar também em tratados não médicos. 

"O impontual é ladrão do tempo alheio"

O título acima é apenas uma de muitas frases que todos os que conhecem a história de vida de Fernando Figueira nunca esquecem. “O professor tinha muito respeito pela pontualidade. Dizia muito acertadamente que quem chegava na hora combinada era penalizado por aquele que chegava atrasado, pois o pontual tinha que esperar pelo retardatário, perdendo o precioso tempo”, escreve o pediatra João Guilherme Alves, em livro que organizou com o colega Otelo Schwambach, publicado em 2004, sobre o papel educador do mestre Figueira.

Para os profissionais que achavam 7h (hora em que os médicos do Imip iniciavam o trabalho) muito cedo, Figueira explicava, segundo relata João Guilherme: “Vivemos num clima tropical, o dia começa cedo. Temos muita gente precisando de nossos serviços. Além disso, vejam seus pacientes... A maioria deles chegou ao Imip ainda de madrugada, outros dormiram pelas calçadas, pegaram dois ou três transportes, outros andaram dezenas de quilômetros a pé, deixaram outros filhos em casa. Tudo isso na esperança de serem bem atendidos no Imip e recuperarem a saúde. Não podemos decepcioná-los”.

Essa história é contada por todos os discípulos de Fernando Figueira e denota o quanto o professor realmente se preocupava com tudo o que estava por trás da doença. A lição de moral era tão distinta que ainda falava para os residentes e médicos que eles eram abençoados, amados, bem alimentados e vestidos, além de muitos possuírem condução própria. “Ora, se seus pacientes, que não têm nada disso, chegam ao Imip às 7h, por que vocês não conseguem?”.

No mesmo livro, a pediatra Geisy Lima, chefe da Unidade Neonatal e Unidade Canguru do Imip, também relembra um episódio em que a pontualidade do professor se sobressaiu. Ela conta que, em 1997, organizou um treinamento para médicos e enfermeiros sobre o modelo de assistência mãe canguru. Às 8h, horário em que o encontro estava previsto para começar, só havia chegado três dos 18 participantes. “O professor abriu a porta e perguntou por que eu não havia começado a dar aula. Justifiquei que estava esperando os alunos que estavam chegando do interior. Ele me deu ordem para começar porque o meu tempo deveria ser valorizado. Pediu para, no intervalo, levar os alunos à sua sala”, diz. Naquela ocasião, ele distribuiu um texto que abordava sobre o desrespeito das pessoas que chegavam atrasadas aos compromissos. Foi mais uma lição de que o profissional deve seguir preceitos além da medicina.

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