Epecial Stanislávski

Há 150 anos nascia Constantin Stanislávski

Jornal do Commercio inicia série de matérias sobre o encenador russo que pensou décadas à sua frente e lançou um sistema de atuação revolucionário

Mateus Araújo
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Publicado em 17/01/2013 às 6:15
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Jornal do Commercio inicia série de matérias sobre o encenador russo que pensou décadas à sua frente e lançou um sistema de atuação revolucionário - FOTO: Reprodução
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Teatro russo, início da segunda metade do século 19: um Fausto (obra de Goethe) montado em apenas oito ensaios. Uma fórmula engessada de trejeitos, cenários e vozes. Atores artificiais, preparação mínima e interpretação exagerada. Teatro russo, metade do século 20: uma cena visceral, um ator mergulhado no personagem, orgânico, mutável. Um nome e um sistema com a força de seu sobrenome foram responsáveis por uma grande revolução no palco, nas coxias e na plateia. Há 150 anos, nascia Constantin Stanislávski (1863-1938), um homem que pensou décadas à sua frente e que mudou a maneira de se fazer teatro a partir de então.

Constantin Serguêievitch Alexêiev (o sobrenome famoso só é adotado depois) nasceu numa família que respeitava a arte. Ele era um dos dez filhos de um bem-sucedido comerciante do setor têxtil e de uma renomada atriz francesa. Àquela época, a Rússia ainda era considerada atrasada culturalmente em relação ao resto da Europa. Em torno do Czar vivia a aristocracia e a cólera da desigualdade em um País essencialmente rural. A arte russa passou a buscar retratar a realidade social, com críticas ferrenhas ao poder da época.

Dentro de casa, na sala em que o seu pai construiu para ser palco das apresentações artísticas da própria família, o futuro encenador russo assumia a figura de ator e de “crítico”. No primeiro dos seus tantos cadernos de anotações (a ponta do novelo de uma grande teoria que futuramente marcaria o teatro moderno), aos 14 anos, em 1877, Stanislávski registrou com detalhes a estrutura e o caminhar das interpretações daquela noite. No chamado Circo Alexêiev havia palco, camarins e ateliês para a criação dos figurinos e cenários. Naquele dia, Stanislávski (apenas no elenco), o pai, os irmãos, os amigos e a governanta encenam os vaudevilles A provinciana, Qual das duas, O velho matemático e A xícara de chá (primeiro ato), conforme esmiúça a pesquisadora Elena Polyakova, no livro Stanislávski, inédito em português.

Em uma das análises sobre as apresentações na abertura da sala de teatro de casa, o ator fez uma análise severa de sua própria interpretação. Para a pesquisadora russa Elena Vassina, formada na Universidade Estatal de Moscou (MGU) e professora de Letras da USP, já naquele momento Constantin se revela o pensador instigado e provocado pelo papel do ator. “O impressionante é que Stanislávski, desde adolescente, mostra sua capacidade de autoanálise, reflexão crítica e o desejo de aprimoramento, ou seja, aquelas características que vão motivar seus futuros estudos de trabalho de ator”, afirma Vassina.

Minha tarefa, até onde minha capacidade o permite, é mostrar à geração moderna que o ator é um pregador da beleza e da verdade.

Constantin Stanislávski, encenador russo

 

“O impressionante é que Stanislávski, desde adolescente, mostra sua capacidade de autoanálise, reflexão crítica e o desejo de aprimoramento, ou seja, aquelas características que vão motivar seus futuros estudos de trabalho de ator”, afirma Vassina. “É difícil separar diferentes facetas do talento de Stanislávski. A meu ver, é justamente a síntese de seu talento de ator, de encenador, de teórico teatral e de pedagogo que cria a sua genial personalidade artística.”

Uma agulha que roça a ferida incessantemente. Era assim que Stanislávski se sentia em relação à maneira com a qual os atores guiavam seus papeis enrijecidos num abecê de formas vulgares e clichês. Para ele, o teatro da Rússia, em geral, vivia composto por quadros ruins e impostações vocais limitadas pelos hábitos da declamação. Era preciso romper com o corpo adestrado do ator, com os sentimentos delineados de forma rígida – era aquela coisa: ou é triste, ou feliz, ou sorri, ou chora.

Stanislávski observava atentamente as interpretações dos grandes atores e atrizes da sua época, como a da atriz Maria Yermolova, de quem era admirador. Para ele, sua conterrânea era dona de um norteamento cênico diferente do imperante até então, mas (por falta de uma sistematização do processo) frequentemente submissa a momentos de inspiração. Havia uma angústia provocadora no menino rico que só pensava em teatro, que clamava por expressividade e, sobretudo, verdade, em cena: “Deus meu! – exclamava em mim a voz da dúvida – será que os artistas do palco estão condenados a servir e transmitir eternamente só o grosseiramente real?”, escreveu em uma das suas anotações.

Essa inquietude, somada à análise e ao detalhamento de tudo que via e de tudo que buscava desconstruir no palco, o levou a desenvolver, em décadas de trabalho, a maior teoria do teatro moderno: um realismo cênico que prezava pelo natural. A partir dos cadernos de anotações que desfiavam passo a passo o processo de preparação do ator na construção do personagem, Stanislávski criou um sistema que faz do ofício do ator uma obra de arte complexa e completa, uma estruturação não só física, mas, sobretudo, erguida no inconsciente e nas memórias sentimentais do intérprete.

“Ele é o único ator e encenador que sistematiza, também de forma artística e literária, as diversas fases do trabalho criativo, técnico e ético do ator”, garante o ator, professor e encenador pernambucano João Denys. “Em termos sistemáticos, nenhum pensador do teatro foi mais longe e mais fundo. O sistema é um sistema de vida artística. Daí sua importância, permanência e vitalidade.”

Ideias que foram reunidas em livros que hoje estão espalhados mundo afora como “bíblias” que formam direta ou indiretamente atores: O trabalho do ator sobre si mesmo parte 1: O trabalho sobre si mesmo no processo criador da vivência – diário de um ator; O trabalho do ator sobre si mesmo parte 2: O trabalho sobre si mesmo no processo criador da encenação – materiais para um livro; e O trabalho do ator dobre o papel – materiais para um livro. No Brasil, as obras são respectivamente A preparação do ator, A construção da personagem e A criação de um papel, traduzidas das versões norte-americanas.

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