Entrevista

"Nelson é teatro em estado puro"

Em entrevista, Antônio Cadengue explica como resolveu montar Doroteia

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 29/05/2014 às 6:05
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Em entrevista, Antônio Cadengue explica como resolveu montar Doroteia - FOTO: NE10
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 JC- Por que, depois de  Senhora dos afogados, voltar a Nelson Rodrigues?
ANTÔNIO CADENGUE – Acredito que Nelson Rodrigues traz na sua dramaturgia pelo menos três aspectos que considero relevantes para serem sempre revisitados. A primeira é que mesmo tendo escrito sua obra no século passado, ainda é capaz de revelar inúmeros aspectos da sociedade brasileira. Isso é um tema central nas minhas proposições estéticas e ideológicas: pensar o País de alguma maneira, especialmente revelando o lado, ou um dos lados, obscuro do Brasil. Segundo, porque sua dramaturgia tem a força necessária para ser levada ao palco, por sua carpintaria, por sua linguagem eminentemente teatral e não apenas literária: nas suas peças, subjaz uma precisão nas falas que é o suporte da cena, ou seja, é teatro em “estado puro” e intensa musicalidade. Terceiro, por uma relação pessoal de aceitar os desafios propostos por esta dramaturgia, sempre desafiadores para qualquer diretor.

JC – Você se considera um diretor rodrigueano? Quer dizer, a dramaturgia de Nelson, ainda que você monte outros autores, está presente como uma rubrica em (quase) tudo que você monta?
CADENGUE – Não me considero um diretor rodriguiano, porque se ele dá pistas estéticas para um encenador, ele não é um manual de direção, nem uma poética teatral formalmente expressa. Temos realizado espetáculos os mais diversos, sempre partindo a encenação daquilo que o próprio texto pode sugerir. Encenar é fazer escolhas, seja a partir de um texto predeterminado, seja por meio de outro meio que não este. E uma verdadeira obra implica múltiplas possibilidades de leitura. O encenador faz uma, que se abre em outras tantas para o espectador. Desde que a (companhia) Seraphim existe, essa é apenas a segunda vez que o representamos.

JC – Como em Álbum de família e outras peças que o próprio Nelson chamava de “tragédias desagradáveis”, Doroteia traz, de novo, a relação entre sexo, culpa e morte. O que esse texto tem de especial no repertório de Nelson que te motivou a montá-lo?
CADENGUE – A peça toda é pungente enquanto ficção. A gravidade dessas personagens abissais vai se mascarando, em vez de ir se desmascarando, e isso me atrai, o jogo das máscaras, da vertigem das máscaras. É esse tônus de tragédia e ironia que me move em direção a ela.

JC – Você já declarou que cada nova montagem sua é uma “tese”. Qual sua hipótese para Doroteia?
CADENGUE – A afirmação é uma “boutade”. Mas é verdade, por outro lado, que eu pense cada peça, seja de Nelson ou não, a partir de um conceito geral que tenha de minha leitura dela, na qual se pode dizer que estaria aí a “tese” embutida. Penso que a morte hoje tem pequeno valor simbólico nas sociedades ocidentais. E a morte está intrinsecamente ligada à vida. Doroteia trata dessa questão, de maneira surreal e com absoluto ineditismo, antes de Esperando Godot, do (dramaturgo irlandês Samuel) Beckett, que instaurava um niilismo pós-guerra compreensível até hoje. Começo, tal qual em Esperando Godot, que tem uma árvore seca em cena, com uma determinante cenografia de Doris Rollemberg, na qual, em primeiro plano, uma sala vazia e ao fundo, uma parede com gavetões, talvez um armário, ao mesmo tempo como necrotério, um Instituto de Medicina Legal. Na encenação, essa casa-personagem entrelaça-se a um “reino dos mortos”. Gosto de uma cenografia que me faça formular imagens. Aqui, estamos em um ambiente no qual se conservam os mortos. Ao final, dá-se a completude de sua função: os gavetões se abrem e deles surgem pés de mortos, calçados de botinas, à espera, quem sabe, de ajudarem as personagens a apodrecerem junto a eles. Em cena, temos ainda, aqui e ali, a figura do Jarro, como se fosse um ‘deus ex-machina’ que nada resolve, e as botinas desabotoadas. Essas personagens-objetos poderiam suscitar a compaixão, à medida que também elas têm desejos e sabem a quem se dirigir, mesmo contando com nossa repulsa. Mas também temos a náusea, que acomete todas as mulheres da família, mas não afeta Das Dores, nem Doroteia. Elas escaparam da náusea e Das Dores, ao se encantar com a possibilidade de viver seu desejo pleno – sendo de pronto lembrada pela mãe que não passa de uma natimorta –, prefere voltar ao útero materno para nascer mulher.

JC – Qual a sua concepção da montagem?
CADENGUE –  Dentro de minha concepção, ganham especial relevo os figurinos de Aníbal Santiago e Manuel Carlos que retraçam um painel de inatualidade que recusa, de certa forma, o tempo presente, ao valorizar nas primas (e em D. Assunta) as camadas da indumentária medieval, tão presentes no imaginário do conservadorismo brasileiro. Das Dores tinge-se de cinza, de maneira renascentista, como a lembrar o que se passou e que ainda nem chegou a existir. E Doroteia, como as mulheres de “vida airada” do início do século 20, permite a entrada paródica da modernidade, como se fosse flagrada por um Baudelaire, aos olhos de Walter Benjamin. A iluminação de Luciana Raposo foca e justapõe as luzes sobre a cena e as personagens, dando a ver uma visão da fantasmagoria presente na peça. Poder-se-ia pensar que uma luz expressionista é reapresentada, na sua particular maneira de cruzar os focos recortando a fábula. E assim, criando uma sintaxe que refaz o jogo do atores e a interioridade de suas personagens. Mas é a trilha sonora de Eli-Eri Moura que instaura, neste tempo-espaço, os sons mais próximos a uma cosmogonia que traduz renascimento, caos, morte, vida, sexo, castidade, vermelho, negro, maldição, salvação, orgasmo e náusea, por meio de um jogo narrativo-musical envolvendo diferentes linguagens composicionais. Eis os elementos metafísicos e plásticos que irão precipitar nossa Doroteia ao encontro do público.

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