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Cadengue potencializa Doroteia

Na montagem do texto de Nelson Rodrigues, diretor potencializa arquétipos

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 30/05/2014 às 18:29
Larissa Moura/Divulgação
Na montagem do texto de Nelson Rodrigues, diretor potencializa arquétipos - FOTO: Larissa Moura/Divulgação
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Na noite sem chuvas de quinta, depois dos aplausos entusiasmados e emocionados que se seguiram à estreia de Doroteia, encontrei Antônio Cadengue na rua. Vinha, sozinho, do Teatro Barreto Júnior: “Gosto de caminhar para casa depois das estreias”. Lembrava o próprio Nelson Rodrigues, que se refugiou com os humores de suas úlceras numa leiteria do Rio de Janeiro após o sucesso retumbante de Vestido de Noiva – a peça que fez o favor de instaurar a dramaturgia contemporânea no Brasil. Confirmada a imagem: depois de entregar a criação ao público, o criador tem a necessidade/carência do silêncio para refletir; saber se conseguiu a comunicação.

E essa montagem de Cadengue para a “tragédia desagradável” de Nelson tem muito a dizer. Primeiro, pela força do próprio texto, menos entendido e lembrado que as outras “peças míticas” de Nelson, como Álbum de Família e Senhora dos Afogados, obra que recebeu de Cadengue, no Recife, montagem antológica há mais de dez anos.
Como se rubricasse que os gestos mais pessoais são orquestrados pelas condicionantes sociais, como se lembrasse aquele pressuposto da sociologia de Durkeheim de que a cultura antecede e conforma o indivíduo, o diretor reforça a metáfora da máscara sugerida pelo próprio dramaturgo para explicar as mecânicas da família em cena como microcosmo privilegiado de confirmação do todo social.

Não apenas quando a personagem-título se redime da beleza que a condena à repugnante condição de desejante e desejável, e veste o rosto com a máscara das chagas que precisa ostentar para ser aceita numa família de mulheres vigilantes (“não se pode confiar numa mulher de pele boa”), conservadoras da moral, residentes de uma casa sem paredes, sem quartos, para que “não se durma, não se sonhe” - o sonho pode ser o escape para a volúpia tão vigilantemente reprimida. Mas na precisa coreografia dos atores. Nossos gestos são máscaras.
Tragédia de conteúdo psicanalítico, Doroteia não tem propriamente personagens humanizados em suas nuances, mas arquétipos fragmentados que nos falam da hegemonia da estética, do constrangimento como elemento de conformação social, da importância das castrações para a confirmação das estruturas simbólicas que nos moldam.
Com sua encenação clássica, posturas e projeções vocais elizabetanas, e movimentações emprestadas do teatro japonês tradicional, Cadengue parece reforçar a potência arquetípica do texto de Nelson. Dá tratamento “clássico” à peça e, ao mesmo tempo, reforça comicidades subliminares com o elenco de personagens femininas interpretadas exclusivamente por homens. Roberto Brandão tem o magnetismo de uma esfíngie, em sua postura pênsil entre o desejo da vida pregressa e a vontade de ser aceito/a pela família (“Acho lindo ter parente”). Carlos Lira amplia com sarcasmo e autoridade a mais autoritária das velhas. No papel da Das Dores, a filha natimorta que vaga pela casa e só poderá ser enterrada depois de sentir a náusea que toda mulher deve experimentar por um homem, Mauro Monezi passeia com iconicidade pelas ambiguidades da personagem. Ajudam a por em cena a reflexão sobre as próprias construções sociais sobre o masculino/feminino.

Certamente desagradável quando de sua estreia, em 1947, Doroteia hoje, apesar de contemporânea, tem comicidades latentes. A cena em que as velhas se locupletam de suas feiuras nos arranca, aos risos, da cadeira - ainda que um riso algo sarcástico. Se menos solene, a trilha sonora talvez nos ajudasse a potencializar certas ironias. Com Doroteia, Cadengue confirma seu gênio criador quando se debruça sobre Rodrigues.
Doroteia. Teatro Barreto Júnior, Pina. Tel.: 3355-6398. De sexta a domingo, até 22 de junho. Às 20h. R$ 20 (inteira). Hoje, R$ 14.

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