Dama dos palcos

Fernanda Montenegro celebra 90 anos com livro de memórias

Nas páginas, atriz aborda sua prolífica carreira, vida pessoal e política

Márcio Bastos
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Márcio Bastos
Publicado em 16/10/2019 às 10:58
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Nas páginas, atriz aborda sua prolífica carreira, vida pessoal e política - FOTO: Divulgação
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A carreira de Fernanda Montenegro é indissociável da história do teatro, da televisão e do cinema do Brasil desde 1950. A trajetória de um dos maiores ícones da arte nacional é celebrada agora com o lançamento de Prólogo, Ato e Epílogo (Companhia das Letras), livro de memórias que marca os seus 90 anos, completados nesta quarta-feira (16), escrito em colaboração com Marta Góes. Na obra, La Montenegro revela detalhes de sua vida familiar, lembra trabalhos marcantes, glórias e dificuldades, tecendo ainda comentários aguçados sobre situação política e cultural do país ao longo das últimas nove décadas.

Símbolo de resistência e resiliência, Fernanda Montenegro é hoje um dos poucos ícones sobreviventes de uma geração de mestres da interpretação. A comemoração de seus 90 anos é também uma oportunidade de um país que trata com pouco apreço a memória reverenciar – com justiça – quem tanto fez e continua fazendo pela arte. Ciente de seu papel, ainda mais em um momento em que a classe artística é constantemente atacada (a própria Fernanda foi alvo do diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte, Roberto Alvim), ela faz de suas memórias um registro de uma vida dedicada a um ofício, a um chamamento.

Parte da segunda geração de imigrantes italianos e portugueses, Arlete Pinheiro da Silva, seu nome de batismo, é fruto de uma família de trabalhadores, religiosos, de poucos recursos financeiros e, acima de tudo, unida. Nas memórias, ela conta que não idealiza a infância, mas afirma sem medo que foi um período feliz. Resquícios da tradição familiar, lembra Fernanda, a acompanharam por toda vida. “Nesses primeiros anos de vida, tão protegida, tão feliz e tão livre, sofri, também, como todas as crianças, medos, inseguranças e angústias. Mas, apesar da alternância de sentimentos, esses anos me alicerçaram para sempre.

Por uma estranha e precoce maturidade, sinto já nos meus oito anos o início da minha adolescência”, escreve.
Iniciou sua carreira artística na Rádio MEC, onde atuou como locutora, radioatriz – como Arlette Pinheiro – e também redatora. Para esta última função, adotou o nome de Fernanda Montenegro. A escolha do Fernanda, foi pelo “clima de romance do século 19” que evocava. E o Montenegro um sobrenome que sempre ouviu falar devido a um médico da família. Por fim, adotou por completo o nome artístico.

Essa iniciação na vida artística é recheada de referências, como os artistas que admirava ainda como espectadora, como Grande Otelo, Bibi Ferreira, Procópio Ferreira, Eva Todor. Fernanda faz questão de citar os que vieram antes dela, seus contemporâneos e as novas gerações. Com sua generosidade, ajuda a manter viva também a memória das nossas artes e reverencia nomes hoje esquecidos, como ela mesma aponta. De Pernambuco, ela ressalta a importância do Teatro do Estudante de Pernambuco, com Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna, e o Teatro de Amadores de Pernambuco.

Sua participação na televisão, desde a chegada do aparelho ao Brasil, também é destacada e ajuda a compreender as transformações culturais pelas quais o país passou. Mas é no palco onde Fernanda sempre se sentiu livre, completa. A parceria de vida com Fernando Torres, igualmente apaixonado pelo teatro, fortaleceu essa entrega. Com uma honestidade tocante, ela fala, sem floreios, de uma parceria de vida com aquele que, com ela mesma conta, foi o único homem da sua “mais profunda, celular intimidade”.

LA MONTENEGRO

As visões de Fernanda Montenegro sobre carreira, sucessos e fracassos, família, sociedade, política e tantos outros assuntos são expressas sem dogmatismo. O que fica claro na leitura, inclusive, é um comprometimento absoluto com sua integridade, com uma visão de mundo que não aceita extremos nem comprometer sua dignidade. Das dificuldades financeiras à consagração como ícone do teatro, da televisão e do cinema, Fernanda fala de tudo com a serenidade possível só a quem viveu tudo com plenitude.

Adentrar a intimidade de um ícone da estatura de La Montenegro é um privilégio sem igual, com direito a momentos tocantes, como sua troca de cartas com Paulo Autran, pouco antes da morte dele, em 2007. Ou, ainda, quando Fernando Torres, já muito debilitado e com alguns momentos de pouca lucidez, em 2008, dias antes de falecer, pegou o texto da peça É..., de Millôr Fernandes, marcante na carreira do casal, e a chamou. “Vamos ensaiar?. Nós nos sentamos à mesa e ele leu o título, o nome do autor. Leu a descrição do cenário. Percebeu que aí começava o diálogo. Olhou para os lados – não havia elenco em torno daquela mesa. Estávamos só eu e ele. Voltou a si”.

Ainda em atividade – poderá ser vista em breve nos filmes A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, e Piedade, de Cláudio Assis, este ainda sem data de estreia – Fernanda Montenegro continua instigante e instigada. Seu trabalho mais recente no palco é a leitura Nelson Rodrigues Por Ele Mesmo. Ela fecha a leitura com a frase “Aprendi a ser o máximo possível de mim mesmo”. “Não é um pensamento ególatra, é uma frase de quem fez da própria vida uma fonte de resistência, é uma frase de auto-entendimento”, escreve. E termina o livro com a elegância que é sua assinatura: “Tudo vai se harmonizando para a despedida inevitável. Inarredável. O que lamento é a vida durar apenas o tempo de um suspiro. Mas, acordo e canto”.

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