Patrimônio

O tesouro brasileiro de Carlos Augusto Lira

Arquiteto começa a catalogar sua coleção de mais de cinco mil peças que contam a história da arte e do imaginário brasileiro

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 19/05/2013 às 9:00
Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
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Homem que reeducou a natureza e codificou o paisagismo brasileiro, Roberto Burle Marx nem cogitava decorar a entrada de seu sítio-museu, em Guaratiba, no Rio de Janeiro, com os leões de Nuca de Tracunhaém e o arquiteto Carlos Augusto Lira já tinha a atenção capturada por eles. “No começo, Nuca os fazia pequenos, mais simples. Só depois, acredita-se que por inspiração nos leões portugueses que Zé Santeiro mostrou a ele, vieram os grandes, cacheados, de mais de um metro”, lembra o arquiteto que, naquele 1974 em que visitou a cidade pernambucana feita mais de barro que de gente, começou a ajudar o artesão da Mata Norte a converter-se em verbete da arte mais popular brasileira. Com a aquisição daquele leão, Carlos Augusto transformava, ainda que inconscientemente, seu próprio nome numa das mais sólidas referências sobre a plasticidade do imaginário brasileiro no século 20.


Quase 40 anos e mais de cinco mil peças depois, tantas que ele nem sabe quantas são, Lira é hoje um dos maiores colecionadores do País. Para alguns, o mais amplo. “Ele não tem a maior, mas certamente a melhor coleção do Brasil”, diagnostica a antropóloga carioca Ciema Melo Silva, diretora do Museu do Homem do Nordeste e integrante da equipe pioneira para catalogação, manutenção e publicação da coleção Carlos Augusto Lira. Além de analisar criticamente o conjunto superlativo das peças, escreve ensaios para um livro, ainda embrionário, sobre a coleção vertiginosamente polissêmica. O projeto aguarda aprovação na Lei Rouanet.
Antigo membro da equipe do escritório de Acácio Gil Borsoi e Janete Costa, que tanto ajudaram a diluir as fronteiras do preconceito arcaico e espesso no que o senso mais comum distingue entre artes popular e erudita, Carlos Augusto era apenas um grande entusiasta dos artistas que encontrava por suas incursões nas feiras, interiores e periferias. “Nunca tive a preocupação de ser colecionador. Era apenas um comprador entusiasmado”, minimiza.


A humildade não combina com a grandiosidade da coleção, ora ampliada pelo impulso mais irracional da aquisição emotiva, ora pelo olhar concretamente curatorial. Catalogador, ele, por exemplo, completa com réplicas de peças antigas feitas por filhos de mestres o conjunto que não pode ser adquirido dos criadores originais.
Entre a coleção, estão mais de 30 Vitalinos antigos e raríssimos, verdadeiros documentos históricos do homem que a crítica diz ter inaugurado a arte popular do Brasil no século passado. Carlos Augusto pede a Severino, filho de Vitalino, as peças que não pode ter adquiridas diretamente do mestre. “As reproduções não têm o mesmo impulso criativo original, mas são importantes porque têm o papel de renovar e manter a memória da arte dos pais”, diz ele que, assim, chegou às 118 peças diferentes nas quais Vitalino fazia a crônica do Agreste.


Não é uma coleção dispersa. “Nós podemos encontrar as obras do começo, do meio e os protótipos que consagram a estética desses artistas. Como também o que seriam as obras da maturidade”, observa Ciema Melo.
É difícil caminhar pela residência de Lira sem se desviar de algum objeto – estético ou utilitário. Na casa do arquiteto, em Apipucos, as peças estão, na medida do possível, agrupadas por escola, estética, artista ou fase. “Tive que transformar a antiga sala de TV dos meus filhos, hoje adultos, em espaço para abrigar as peças”, diz. Nem o quarto escapa. As paredes foram transformadas em estantes e vitrines com iluminação especial para uma grande seção de cerâmicas.


Numa mesma parede estão, em nichos específicos, Vitalinos, peças de arte pré-Colombiana, as primeiras esculturas de Zé Caboclo e as primeiríssimas peças de Ana das Carrancas. Entre elas, várias carrancas sem o furo nos olhos. “No começo, ela não furava as íris. Só passou a furar depois que o marido, cego, passou a ajudá-la”, conta. Nem mesmo o museu mantido pelas filhas de Ana, em Petrolina, possui peças da primeira fase. “Vou doar duas obras a elas”, conta.


Noutro trecho da parede estão ex-votos anônimos de barro e as primeiras cerâmicas da escola clássica de Tracunhaém. “O que mais me emocionam são esses santos de Severina Batista. Ela tinha um grande traço impulsivo. Enquanto todos faziam aqueles santos os mais parecidos com os santos de igreja, ela fazia santos de três cabeças”, comenta Carlos Augusto, entre uma gola antiga de maracatu delicadamente construída com canutilhos e uma saia bordada com metais, peça russa da época dos czares. “Dei essa saia para minha filha Joana (Lira, artista plástica e designer). Mas é pesada, e ele nunca usou. Acabei botando na moldura.”


O olhar curatorial de Carlos Augusto tem a vantagem da antecipação. De ter chegado a peças importantes da afirmação estética brasileira antes de terem se submetido aos clichês do mercado. Sua sala no escritório localizado na Praça de Casa Forte tem uma das paredes forradas, entre outras, por bonecas do tipo Izabel do Vale do Jequitinhonha. De antes de elas assumirem o ar tão acabadamente casadeiro de brincos pendurados, olhos agigantados e buquês na mão, presentes nas lojas mais óbvias de artesanato do País. “Com o tempo, alguns artesãos acabam se submetendo a uma expectativa mais medíocre do mercado. Uma bobagem que apareceu com força recentemente são essas bonecas nordestinas de cabelinhos feitos de pregos”, diz ele para quem, grosso modo, a Feira de Caruaru se tornou um amontoado de clichês em barro.


Ao lado do crème de la crème da cerâmica nordestina, a coleção de Carlos Augusto Lira exibe também objetos antigos do boi mamão de Florianópolis e da cerâmica popular de Taubaté – o que confirma a disposição da coleção de romper e ampliar fronteiras. Um ecumenismo polissêmico. “A coleção de Lira não é apenas uma coleção da arte nordestina, mas, de forma muito ampla, da arte brasileira”, endossa a antropóloga Ciema Melo Silva.


É uma coleção em permanente expansão. O arquiteto diz que simplesmente não consegue ver uma peça e deixar de adquiri-la. “Mas já conversei com meu terapeuta e ele me disse que minha compulsão é saudável”, diz, entre gargalhadas, o arquiteto. O celular de Carlos Augusto Lira é permanentemente acionado por artesãos, artistas e atravessadores interessados em lhe oferecer novas peças. Semana passada, por exemplo, não conseguia dizer não ao artista Luiz Benício, de Buíque, autor de figuras humanas e animais, rústicos e expressivos, em madeira crua. Ficou com um fotógrafo de quase dois metros esculpido em madeira. “Além de um grande artista, é uma grande figura humana”, diz, padrinho permanentemente interessado em fazer a produção chegar ao mercado.

“Precisamos fazer o dinheiro chegar a essas pessoas”, diz ele, feliz com o aumento de valorização financeira que esse antes desprezado segmento da arte, que não frequentava museus ou escolas de belas artes, recebe.
Seu faro curatorial também antecipa a revelação de talentos ocultos. Lira, por exemplo, anda entusiasmado com o trabalho do paraibano Bita, um policial militar que, nas horas vagas, confecciona grandes totens de cerâmica repletos de figuras humanas amontoadas numa dramaticidade que lembra a arte da Oceania ou o Galdino de Caruaru. “Não é fácil, hoje, encontrar tão facilmente artistas com algo diferente, gente com brilho próprio”, diz. “Vou ajudar a trazê-lo para a próxima Fennearte”, diz ele, um dos curadores da Feira Nacional de Negócios do Artesanato.


Seu colecionismo, no entanto, não se pauta apenas por nomes consagrados ou com potencial para. No quintal da casa onde funciona seu escritório, ao lado de antigos confessionários, leões gigantes e bancos zoomórficos, estão esculturas de madeira escura, densa e pesada. Representam santos e entidades heterodoxas como uma sereia-Iemanjá de seis seios. Só depois de comprados, ele descobriu se tratarem de peças esculpidas por Doidão, Louco e Louco Filho, os mais notórios artistas do Recôncavo Baiano.


“Nunca me pautei pela compra de grifes, de nomes consagrados”, diz ele, proprietário de uma gama tão grande e ainda sob censo para revelar sua verdadeira dimensão de objetos utilitários que só com o tempo ganhariam relevância estética. São cestos, tachos, panelas, quebra-nozes e até utensílios já obsoletos, como madeiras esculpidas com a finalidade de serem batedores de roupa. “Eram usados por lavadeiras na beira dos rios”, diz ele. Assim, numa das paredes da casa, acima e ao lado do consagrado mestre Dezinho do Piauí, estão mais de uma centena de ex-votos de madeira. As peças votivas, feitas para a materialização do agradecimento de graças religiosas alcançadas, aparecem também na forma de pequenos retábulos pintados de madeira. Do século 17 aos dias atuais, a coleção é rica também de peças sacras como as brasileiríssimas santas do pau oco e imagens de São Sebastião de vários estilos e escolas. “Gosto especialmente do santo”.


“A coleção de Carlos Augusto não só representa a arte, mas a plasticidade do imaginário brasileiro”, diz Ciema, confirmando que, sim, na sua casa de Apipucos, o arquiteto condensa uma nação. “Sob todos os aspectos, dos artísticos aos antropológicos, a coleção é importantíssima. Não pode acontecer com ela o que aconteceu com outras coleções que foram compradas e saíram de Pernambuco”, antecipa-se.
Numa das paredes da casa, a assinatura da pequena tela revela um Brennand de apenas 17 anos que, em 1944, ensaiava sua afirmação na criação de uma pintura eminentemente brasileira. Só de quadros de João Câmara, são mais de 20. Há Reynaldos Fonsecas do começo de carreira que, não fosse a marca do artista, jamais reconheceríamos como o pintor das figuras intrigantemente estáticas e algo neorrenascentistas. “São todas obras da juventude”, diz o arquiteto Carlos Augusto Lira.


Responsável por projetos públicos como a cenografia dos Carnavais do Recife de antes da gestão Geraldo Júlio e recrutado por gente francamente instalada nos andares mais privilegiados da pirâmide social, Carlos Augusto não é, financeiramente, um homem rico. “Há quem me ache milionário”, diverte-se. “Mas tudo o que eu ganhei na vida converti em obras de arte”, diz ele que, não raro, projetou várias residências da elite pernambucana açucareira já em declínio em troca de obras de arte compradas na época da sacarose a peso de ouro.
Além de pernambucanos consagrados, como Ismael Caldas ou Tereza Costa Rêgo, as paredes estão forradas com nomes obrigatórios nos livros de história da arte brasileira: Siron Franco, Ligia Clark, Anita Malfatti. Muitos, doados como prova de amizade. Na sala de jantar, por exemplo, uma grande pintura de Ariano Suassuna traz, no quadro, a dedicatória feita a tinta: “Para Carlos Augusto”

Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
Anjos do mestre Dezinho, do Piauí - Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
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Nas paredes, obras de Samico e João Câmara - Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
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Peças sacras de séculos diferentes - Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
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A coleção com imagens antigas de São Sebastião - Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
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Anjo de mestro Dezinho, do Piaui - Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
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Na mesa da sala, mais peças sacras - Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
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A parede com ex-votos em madeira - Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
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Ao fundo, peças de Galdino - Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
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As primeiras carrancas da Ana das Carrancas - Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
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Figurativos da cerâmica de Florianópolis e de São Paulo na coleção - Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem
Carlos Augusto Lira numa das salas de casa - Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem

“Tive a sorte de estar na hora certa e ver muita coisa surgindo. De poder comprar coisas que, hoje, talvez, não pudesse mais comprar”, diz ele, amigo de outros carnavais do pintor João Câmara, de época em que ele “não tinha nem um Volkswagen”. “Já deixei de comprar muita coisa por falta de dinheiro”, diz, lembrando também das muitas peças perdidas com o tempo. Várias, quebradas no manuseio doméstico. O que não cabe em casa, e passa ainda por catalogação, está guardado em dois contêineres na Zona Norte do Recife.
A manutenção é preocupante, temos que passar seladores e outros produtos permanentemente. Umidade e cupim podem acabar com as peças”, preocupa-se ele.


Nos três pavimentos da casa, estão várias telas de Antônio Poteiro, o ceramista e bonequeiro goiano que, incentivado por Siron Franco, começou a pintar em 1972 e, com sua estética naïf, ganhou prêmios ecumênicos como de melhor escultor pela Associação Paulista de Críticos de Arte, de 1984, além de comendas do Governo de Portugal.


Todas expostas ao lado de telas assinadas por nomes chancelados pela academia, pela crítica e, sobretudo, pela elite intelectual, como João Câmara, Brennand, Ismael Caldas e Siron Franco. “Eu acho que o que se chama de popular é igual ao que chamamos de erudito. Picasso, Brennand, todos esses beberam nas fontes. Foram à África...”, diz ele. “Toda arte é contemporânea. De outra forma, não seria arte. Essa distinção entre arte contemporânea e popular só tende a desaparecer”, corrobora Ciema. O próprio Pablo Picasso, em Paris, chegou a exibir um boi de Vitalino ao lado de um de seus quadros. Disse que tinham a mesma importância.

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