CULTURA POPULAR

Quando a arte profana virou fé e festa em Pernambuco

A escultura da Lavadeira, de Ronaldo Câmara, foi objeto de tese que comprova o caminho inverso do comum dos objetos sagrados.

Beatriz Braga
Cadastrado por
Beatriz Braga
Publicado em 02/06/2013 às 6:50
NE10
A escultura da Lavadeira, de Ronaldo Câmara, foi objeto de tese que comprova o caminho inverso do comum dos objetos sagrados. - FOTO: NE10
Leitura:
“Ela fez o que nem eu fiz”, reflete Ronaldo Câmara – arquiteto e cartunista do  JC – referindo-se à mulher de pernas abertas, que torce a roupa suja ao mesmo tempo em que leva a trouxa ao chão. A moça, sob a alcunha da Lavadeira, “lavou (e lava) a alma” de muita gente, diz ele. A sensação de impotência diante da grandiosidade da escultura que ele próprio construiu vem da eterna surpresa de ver, todos os anos, milhares de pessoas fazendo oferendas e saudando sua cria no evento pernambucano que leva o nome da obra. Durante 25 anos a festa da Lavadeira aconteceu na Praia do Paiva, litoral Sul. Em 2012, mudou-se para o Marco Zero, no Recife, e, este ano, precisou achar novo endereço, passando a tomar conta do Bairro de São José. Uma escultura de concreto, criada pelas mãos de um jovem artista plástico, na década de 1980, virou objeto sagrado, como um improviso dos orixás para dar proteção a quem por isso procurava. A história da Lavadeira, de tão particular, tornou-se objeto de tese da pesquisadora Vanda Hertcert.

O que atraiu Vanda, natural de Caxias do Sul e radicada na Argentina, foi conhecer, através de amigos, uma obra que fez o caminho inverso. Uma escultura feita para ser contemplada ganha uma nova realidade ao interagir com a sociedade. “O inusitado acontece quando esse objeto de arte perde sua aura profana e ganha uma sagrada, outorgada pela religiosidade popular, tornando-se um objeto de devoção e inspirando a realização da festa”, conta a pesquisadora. 

Empenhada em encontrar histórias parecidas para sua tese em História da Arte e Curadoria na Universidad del Museo Social Argentino, Vanda descobriu que aquele caso era único e veio ao Recife conhecer o artista e estudá-lo.

“Na História da Arte não há registro de um caso similar. Pelo contrário, está repleta de exemplos exatamente opostos, onde um objeto religioso, como a máscara Bapende do Congo, realizada por alguém para representar seus antepassados mortos e poder venerá-los, ou mesmo a Madona das Rochas, pintada por Da Vinci para adornar o altar da capela milanesa de São Francisco, é descontextualizado e perde seu significado religioso ao ser exposto em um museu”, explica.

A história fica mais curiosa quando Ronaldo relembra como a Lavadeira surgiu. “Quando era jovem, via aquelas mulheres lavando roupas no Rio Capibaribe, nas imediações de São Lourenço da Mata, e achava aquilo muito sensual”. Aprendiz do artista plástico Cavani Rosas, usou o ateliê do mestre para exorcizar a beleza daquelas personagens anônimas de sua adolescência.

Em 1986, a organização da exposição Esculturas na Praça,  na praça do Derby, convidou Cavani para expor suas obras. O artista, por sua vez, condicionou sua presença à estreia dos jovens artistas, incluindo Ronaldo, no evento. Apesar da hesitação dos organizadores, a Lavadeira acabou estampada nas coberturas jornalísticas. Ao mesmo tempo em que o então poeta e colecionador Eduardo Melo passava pela praça e, da janela do carro, apaixonava-se pela obra. Depois de muito flerte e negociação, Eduardo a comprou e Ronaldo adquiriu seu primeiro fusca. O novo dono “guardou” a obra numa área construída na Praia do Paiva, litoral Sul pernambucano, sem cerca nem luz elétrica. 

Um dia, ao chegar ao local, encontrou a Lavadeira sob um manto azul, rodeada de oferendas. Era o começo do encontro sagrado entre arte e os nativos dali. Entre rezas, promessas e rituais, no primeiro dia de maio de 1987, uma das festas mais populares da região dava seu primeiro passo. A lavadeira, hoje, é considerada uma ancestral filha do orixá Iemanjá. 

Ronaldo, não muito certo das crenças que traz dentro de si, vai sempre que pode à festa. De longe, emocionado, observa a obra, deve lembrar das mulheres de roupas coladas na margem do Rio, fruto de seu passado eternizado nas águas lavadas de muita gente.

Leia a matéria completa no Caderno C deste domingo (2).

 

 


 

Últimas notícias