Marcelo Silveira e Cristina Huggins usam a calçada para prosear

Artista plástico e professora de letras recorrem a uma instalação artística para falar sobre o abandono do passeio público
Flávia de Gusmão
Publicado em 10/03/2016 às 15:47
Artista plástico e professora de letras recorrem a uma instalação artística para falar sobre o abandono do passeio público Foto: Fernando da Hora


Uma mesa e quatro bancos foram levados a seis bairros do Recife. Assim começava a ser produzido o conteúdo do que viria a se tornar a exposição 1 Dedo de Prosa, arquitetada pela professora de letras e pesquisadora Cristina Huggins e o artista plástico Marcelo Silveira. A dupla vai receber os convidados para a abertura, hoje, a partir das 17 horas, na calçada exatamente ao lado da fachada do no Museu de Arte Moderna Aluísio Magalhães (Mamam), aparelho cultural mantido pela Prefeitura do Recife.

Até ontem pela manhã, antes da intervenção como parte da instalação artística, o que deveria ser o passeio público que garantiria o confortável ir e vir de pedestres era apenas um vão profundo, e intransponível, como, de resto, são quase todas as calçadas da Região Metropolitana.

Com a reforma do trecho na Rua da Aurora, que contou com o patrocínio da Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP), o transeunte ganhará – embora temporariamente – não apenas um chão para pisar, mas mobiliário e plantas ornamentais que transformarão o inóspito em aprazível. Uma calçada onde as pessoas poderão sentar, tomar um chá, ouvir música e tirar um dedo de prosa.

Trazer à tona os problemas das calçadas e expandir o espaço expositivo para além dos muros das galerias e museus foram as alavancas deste trabalho. O modus operandi, bastante simples.

Foi construída uma mesa de madeira, com dimensões 60x70x70, sob a qual estariam dispostos quatro bancos, sem espaldar, medindo 35x35. O desenho do mobiliário foi concebido, por um lado, para retratar os móveis comumente utilizados pela população e, por outro, para reduzir custos e facilitar o transporte da peça.

O deslocamento da mobília foi feito para calçadas e praças de seis bairros de diferentes classes sociais – Boa Viagem, Areias, Casa Forte, Bomba do Hemetério, Boa Vista e Campo Grande. Durante uma manhã inteira, em dias úteis, mesa e assentos ficavam estacionários, no local escolhido, como se tivessem brotado ali por acaso. Ao seu redor, ninguém para dar qualquer explicação.

Sobre a mesa, jarro com planta artificial que ocultava um gravador, dominó, baralho e o livro Imagens do Recife: Ruas, de Josivan Rodrigues, provocavam o desejo de sentar e ficar à vontade.

Fora do campo de visão de quem se aproximava, ou sentava, fotos e vídeos eram realizados, reportando a interação do público com o objeto inusitado, porque deslocado. São essas imagens – posteriormente autorizadas por quem nelas aparecem – que o espectador assistirá quando entrar para visitar a segunda parte da mostra, num dos salões do Mamam.

O elemento estranho – a mesa – poderia ser comparado à “pedra no meio do caminho”, do poema de Carlos Drummond de Andrade: “Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas”. A mesa torna-se, assim, o obstáculo que faz as pessoas reagirem: “Uma mesa tão bonitinha, não era para estar no meio da rua”, desabafa alguém.” “De quem é essa mesa?”, gritava uma criança ansiosa em Campo Grande. A essa provocação causada pelo objeto, as pessoas respondiam ora cercando-o cautelosas, ora cedendo ao apelo tácito: “sentem-se”. Um homem que faz da rua sua casa encontrou na mesa um acessório perfeito para acomodar uns poucos livros e uma foto da filha. Uma mulher, na mesma situação, aproveitou o dedo de prosa para conjeturar: “Por que o homem chora?”. Respondendo ela mesma à questão proposta: “Porque entra uma criança dentro dele”.

As reações mapeiam claramente a consolidação de uma transição: de quando cadeiras eram colocadas nas calçadas para ver a vida da sua perspectiva mais interessante – aquela que dá para o lado de fora – para o momento em que foram recolhidas e, com elas, o sentido de pertencimento e vizinhança.

“Por não andarmos mais nas calçadas, elas perderam sua função. Estreitaram-se, inviabilizaram-se, passaram a ser cercadas de muros tão altos que a impressão que se tem é que quem está no exterior é que está preso. Quando elas estão em perfeitas condições é simplesmente para facilitarem o acesso de um carro em sua garagem”, analisa Marcelo Silveira.

1 Dedo de Prosa, de Cristina Huggins e Marcelo Silveira – Abertura hoje, às 19h. Bate-papo a partir das 17h, na calçada do Mamam (Rua da Aurora, 265, Boa Vista)

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