Não seria demais lembrar Nestor García Canclini: um dos teóricos de referência quando são estudados os meios de construção de bom senso e hegemonia nas sociedades, o antropólogo argentino aponta como, a despeito de suas enormes benesses, os museus e instituições foram perniciosos à arte. Ao configurar lugares com códigos específicos para a apreciação de obras, criariam também uma categoria de seres “eleitos” para o acesso a esses códigos. No Recife, um novo endereço ajuda a ampliar, com os devidos cuidados expográficos, a geografia de “desistintucionalização” da arte. Apresentada ontem à imprensa, e aberta para o grande público a partir da próxima terça, a galeria RioMar já faz parte do roteiro da cidade. Funciona, não por acaso, no shopping de mesmo nome.
O que, aliás, é um sintoma do contemporâneo. “É uma questão social. Por uma série de fatores que não caberiam aqui ser mencionados, os shoppings ocupam hoje o lugar que já pertenceu às ruas e às praças”, diz a doutora em antropologia Ciema Melo e Silva, idealizadora do conceito expográfico da primeira mostra a ocupar a galeria. Na próxima terça, quando estiver de portas abertas, a RioMar exibirá parte considerável do acervo do arquiteto pernambucano Carlos Augusto Lira (leia mais a respeito na edição de domingo) na exposição A Lírica de Carlos Augusto. “Sem favor, é a mais importante coleção de arte popular do País atualmente”, diz a antropóloga.
Para concretizar o projeto da galeria, o shopping adaptou o lugar que já foi ocupado por uma multimarcas de roupas, no segundo andar do mall, onde estão localizadas lojas de algumas das principais grifes europeias comercializadas no centro de compras. No chamado corredor do luxo, a galeria ocupará uma área de cerca de 600 metros quadrados. Antigos móveis, sonorização e iluminação foram adaptados para as necessidades de uma galeria. Com projeto geral do próprio Carlos Augusto Lira e parceria da empresa Liderança Terceirização na execução, a loja foi dividida em pequenos corredores expositórios paralelos com um salão circuncêntrico. Antigos provadores, curiosamente, viraram câmaras para instalações artísticas de maior interatividade com o público. “Se nos museus, há uma certa formalidade diante das obras, aqui as pessoas podem interagir de maneira mais informal”, comentava Denielly Halinski, gerente de Marketing do centro de compras. “Nós entendemos que os shoppings, hoje, têm uma função que vai além de lugares de consumo. Eles viraram centros de convivência social e cultural. Por isso, a aposta na galeria”, ela comenta.
Assim, de fato, a galeria dá sua largada longe de qualquer possibilidade de ser configurar apenas como um ponto de descanso e encantamento para os olhos de quem carrega sacolas no mall. A RioMar começa suas atividades com uma equipe de monitoria, rara até nas instituições públicas. São seis monitores, todos graduados e pós-graduados em áreas afins com a museografia. “Esse fluxo de gente com vários interesses além das compras é algo muito enriquecedor para esse ambiente. Torna tudo socialmente mais complexo”, comemorava Isabele França, historiadora e pós-graduanda em educação, uma das coordenadoras da nova galeria onde, como de resto no mundo contemporâneo, os fluxos são necessariamente híbridos.
