Especial À Luz de Verger

Há 70 anos, o fotógrafo Pierre Verger renascia no Brasil

Em agosto de 1946, Verger decidiu se mudar para a Bahia, e imprimiu seu olhar em preto e branco sobre a herança africana na cultura brasileira

Mateus Araújo
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Mateus Araújo
Publicado em 23/08/2016 às 6:00
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Há exatos 70 anos, Pierre Verger, nascido branco, renascia preto. Em 5 agosto de 1946, o fotógrafo francês, aventureiro e em busca de liberdade, colocou seus pés em Salvador e, então, decidiu, de vez, mudar de vida. Com sua fotografia em preto e branco, ele se transformou num dos principais antropólogos e historiadores da cultura brasileira, sobretudo a popular, e da ancestralidade africana presente no sangue do Brasil. 

Pierre Verger, o mais novo entre os três irmãos, era um jovem de 30 anos quando se viu sozinho diante da vida. O irmão Louis morreu em 1914; o pai morreu no ano seguinte; o segundo irmão, Jean, se foi em 1929; e a mãe, por fim, partiu em 1932. Filho de uma família burguesa belga radicada na França do entreguerras, o rapaz achou companhia numa Rolleiflex recém-lançada, para assim desbravar o mundo.

Na tese Primeiras imagens: Pierre Verger Entre Burgueses e Infrequentáveis, a pesquisadora Iara Cecília Pimentel Rolima lembra o contexto em que renascia Pierre Verger. Entre a cruz e a espada, entre regras e anseio por liberdade, pulsava o homem desejoso de mudanças em si, encantado pelos questionamentos libertários e artísticos daquela França histórica. 

Da aproximação com os “infrequentáveis”, surgiram os primeiros projetos de Verger. O principal foi a elaboração da agência Alliance Photo, fundada por ele, Boucher, René Zuber, Emeric Feher e Denise Bellon. “Entre o desejo de se livrar do modo de vida imposto pela família e o grupo de amigos ‘livres’, Verger encontrou um caminho para firmar-se como profissional da área da fotografia”, acrescenta Iara, na sua tese. 

Antes de chegar às terras brasileiras, num dos momentos mais importantes de sua carreira, o trabalho no Instituto Francês de África Negra (IFAN), ele pôde buscar o Continente Africano. “As primeiras expedições de Pierre Verger, nos anos 1930, foram para países africanos que falavam francês. Isso tem um peso, um sentido, que facilitou a comunicação. Foi lá que ele teve os primeiros contatos com o culto afro”, explica o antropólogo Raul Lody.

Um convite para trabalhar na revista O Cruzeiro fez o francês se mudar para o Brasil, País que conhecera seis anos antes, numa rápida passagem. Na coletânea  Pierre Verger: Repórter Fotográfico, de 2004, em que estão reunidas 31 reportagens fotografadas pelo francês, a pesquisadora  Ângela Lühning conta que a atividade profissional na revista permitia a Verger finalmente ficar raiz no Brasil como desejava desde a sua primeira estada, em 1940. 

“Ele escolheu Salvador como ponto de partida para inúmeras viagens que realizou durante os anos de 1946 a 1951, quando de sua primeira contratação para O Cruzeiro”, escreve Ângela. “Estes anos foram fundamentais para que Verger descobrisse, nas suas sucessivas viagens pelo Nordeste, e até países vizinhos no Caribe.” Nessa época, o francês chegou a Pernambuco, onde registro o Carnaval com os passistas de frevo e o Maracatu Elefante; visitou Caruaru e testemunhou o trabalho de Mestre Vitalino; e visitou o Sítio de Pai Adão, no Recife.

Na Bahia, Pierre Verger entrou para o candomblé, inciado por Mãe Senhora, umas das principais ialorixás de Salvador, líder do Ilê Axé Opô Afonjá, onde em seguida chegou a ocupar cargo de conselheiro. A sacerdotisa consagrou o francês ao orixá Xangô, porque, como relata a antropóloga  Ângela Lühning, viu no destino dele o papel de mensageiro entre a Bahia e a África.  

À escrita que Pierre Verger se dedicou até os últimos dias de sua vida. No final dos anos 1970, decidiu parar de fotografar, após 50 anos de profissão. Ao morrer, em 11 de fevereiro de 1996, com 93 anos, o antropólogo deixou um acervo robusto e precioso, hoje guardado pela fundação criada por ele em Salvador, na casa onde morou, na Ladeira Vila América. 

REPORTAGEM ESPECIAL 

O olhar de Pierre Verger deixou marcas inquestionáveis na formação sociocultural brasileira e na compreensão da raiz negra do País. Em preto e branco, Verger coloriu nossa identidade, deu face a muitos invisíveis, lançou luz sobre homens e mulheres, manifestações populares, arquiteturas e costumes que nos fazem brasileiros mas, sobretudo, que nos ligam às origens além-mar.

O Brasil que se revelou ao francês baiano continua vivo no Brasil africano que há em nós. Como e onde reencontrar o olhar de Pierre Verger na contemporaneidade. Com esse norte, o Jornal do Commercio criou o especial À Luz de Verger, publicado na versão impressa do jornal e no JC Online. As imagens são do fotógrafo André Nery, e textos do repórter Mateus Araújo e da editora da TV JC, Adriana Victor.

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“Essa é uma reportagem que dialoga com um interesse meu, em jornalismo, sobre a identidade cultural e histórica do Brasil e do Nordeste, contada através de brincantes e pessoas diretamente ligadas às manifestações populares que criam nossa identidade”, explica Mateus. “De certo modo, dá continuidade a uma série de matérias feitas sobre a cultura de raiz nacional – assim como fizemos no especial Pernambuco Vivo, em 2013, com o perfil dos artistas e grupos que têm o título de Patrimônios Vivos de Pernambuco.”

Desta vez, o olhar da reportagem parte do trabalho do registro através da imagem. “Se a história das pessoas têm um significado contado por palavras, as imagens dão novo impacto. Pierre Verger se dedicou a isso”, conta o repórter, que assina a concepção do trabalho. “O especial é uma homenagem a Verger e às pessoas que fazem esse trabalho na fotografia e antropologia.”

À Luz de Verger é uma reportagem especial criada dentro do conceito multimídia do JC. “O material foi pensado sobretudo para a web, com conteúdo também no impresso. É uma reportagem primeiramente visual, com fotografias, vídeos e texto dividindo o protagonismo”, diz Mateus.

A ideia é justamente recriar, dentro do possível, releituras contemporâneas do olhar de Verger para o contemporâneo. No Recife e em Olinda, o fotógrafo André Nery fez, em preto e branco, imagens de passistas, do candomblé, de cantores e bailarinos, buscando, com delicadeza, a poesia da identidade do nosso povo. Entre o material exclusivo, estão vídeos com as cantores Virgínia Rodrigues e Isaar, com o sambista Xico de Assis e o coral Voz Nagô; e clipes com os bailarinos Orum Santana e Maria Paula Costa Rêgo. 

“As fotos originais de Verger (cedidas pela Fundação Pierre Verger) serviram de suporte para a ideia do especial. Elas são usadas no jornal impresso e em algumas matérias do site. O restante, que é a maioria, é meu. E isso é uma responsabilidade imensa. É claro que não consegui (e não se consegue), produzir mais que 5% da beleza e da naturalidade que Pierre Verger conseguiu, até mesmo pelo tempo de pesquisa em que ele próprio fazia ao fotografar um tema, vivendo intensamente antes de produzir qualquer imagem sobre”, conta Nery. “Foi um processo instintivo, de um mergulho na minha iniciação na fotografia, que era regada ao preto e branco de Verger, Bresson e Brassaï.”

As fotografias de À Luz de Verger foram feitas com a mesma lente utilizada pelo francês nas suas imagens: uma 50mm. “O especial traz a estética moderna da fotografia, com tipos de enquadramento e desfoques típico dos dias atuais, uma forma de releitura do trabalho de Verger”, explica André Nery. “É uma homenagem a quem é e sempre será, o mestre de muitos.”

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