Aquarelas

Debret, com a potência crítica de sua crônica visual, em mostra no IRB

Pinturas do artista francês que morou por 15 anos no Brasil focam na desigualdade provocada pela escravização

Flávia de Gusmão
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Flávia de Gusmão
Publicado em 02/02/2017 às 16:37
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Pinturas do artista francês que morou por 15 anos no Brasil focam na desigualdade provocada pela escravização - FOTO: Divulgação
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Jean-Baptiste Debret (1768-1848) não é exatamente um artista conhecido na França, apesar de ter gozado a maior parte da sua existência naquele país, inclusive nascendo e morrendo em Paris, na idade avançada de 80 anos (considerando a época). Suas obras estão espalhadas por museus provinciais, algumas delas instaladas no Palácio de Versailles. A maior contribuição que o artista deu a este segmento, no entanto, permanece ignorada pelos europeus, e por grande parte dos brasileiros. Um recorte feito com 79 aquarelas, selecionadas de um total de 800 feitas pelo artista durante os 15 anos em que viveu no Brasil, poderá ser visto pelo público a partir desta sexta-feira (03/02) na exposição Debret e a Missão Artística Francesa no Brasil – 200 Anos, no Instituto Ricardo Brennand (IRB), com curadoria de Jacques Leenhardt, filósofo e sociólogo francês.

A obra de Debret permanece mais circunscrita ao conhecimento de um punhado de historiadores do que ao círculo exclusivo dos críticos de arte porque, embora não tenha sido um pintor de grande expressão, ele foi um incomparável cronista visual de sua época. Mas não o descritor distanciado por uma pretensa isenção temática, norteada apenas por uma indulgência estética, senão um comprometido analista dos desdobramentos sociais, políticos e econômicos que o Brasil Colônia e o Brasil Império experimentaram.

Desempregado após a queda de Napoleão (1815) – o imperador francês foi um grande mecenas das artes e, até então, figura central nas suas pinturas – Debret chegou ao Brasil no ano seguinte, na companhia de colegas que com ele partilhavam o estilo neoclássico. A Missão Artística Francesa no Brasil, como era chamado o agrupamento, resultou de um convite feito diretamente pelo Rei de Portugal, do Brasil e dos Algarves, D. João VI, para que fosse construída, no Rio de Janeiro, uma Academia de Belas Artes (o que só ocorreria em 1827).

“Chegando ao Brasil, Debret pôde testemunhar um fenômeno único na história da política, observado apenas no Brasil: uma estrutura de colônia sendo transformada em sede do reinado em tempo recorde, por conta da decisão tomada pela corte portuguesa de se instalar definitivamente em seus domínios nos trópicos (1808)”, explica Jacques Leenhardt.

O artista migrou de uma corte para outra, mantendo sua função original de “retratista” da nobreza, mas as semelhanças paravam aí, nas designações. A recém-constituída corte brasileira não poderia ser mais diferente da similar francesa, exigindo de Debret artifícios de cenógrafo – por falta de edificações monumentais, por exemplo, Debret chegou a colaborar com a construção de estruturas decorativas, que simulavam grandiosidade de palácios europeus, mas eram feitas de madeira e tinta, de modo a se desintegrarem em alguns dias. Esta intervenção, por exemplo, está na obra Aclamação de D. Pedro I. Embora ele continuasse traçando com seus desenhos a “foto” oficial do topo da pirâmide, foi a face popular daquele país recém-descoberto que alteraria para sempre a direção de seu olhar.

OLHAR DIRIGIDO


Em sua linha curatorial para esta mostra, Jacques Leenhardt procura trazer à tona esse encanto abismado de Debret diante de uma questão principal: “Como construir uma nação a partir de um enorme contingente formado por índios que se evadiram para dentro das florestas com a chegada dos brancos, e negros escravizados, de várias etnias oriundas do continente africano, mais a presença europeia, representada pelos portugueses e associada, pelos dois primeiros grupos, a tirania e violência?

Leenhardt explica que, ao mesmo tempo em que desenhava e pintava as cerimônias oficiais e festas envolvendo a aristocracia – Coroação de D. Pedro I, O Desembarque da Imperatriz Leopoldina e Alegoria do Segundo Casamento de D. Pedro I são obras desse tipo – , Debret, em seu tempo pessoal, dedicava-se a retratar aquilo que capturava a sua atenção de forma espontânea, mas com o claro objetivo de organizar o pensamento e compilar registros que o ajudassem a compreender esse embrião em gestação: o Brasil, que surgia em meio a incontáveis transmutações sociais e políticas.

Ao deixar o solo brasileiro, em 1831, Debret levava na bagagem todo esse acervo extra-oficial por ele produzido, e que terminaria por compor o livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, publicado em Paris, entre 1834 e 1839, no formato de três volumes. Transformadas em litografias, as aquarelas resultariam em 153 pranchas, acompanhadas de textos que não apenas elucidam aquilo que o observador enxerga, mas acrescenta, ainda, uma rica camada de percepções personalíssimas, encadeadas por uma prosa leve e aguçada.

 

No seu ofício como curador, Jacques Leenhardt – que assina o prefácio da reedição de 2016 do livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, em volume único e organizado rigorosamente na forma concebida pelo autor –, busca reconstruir o processo intelectual, político e histórico que interessava a um Debret profundamente intrigado com a intersecção entre as camadas sociais no tabuleiro da nação em construção.

Seguindo a fórmula escolhida por Jean-Baptiste Debret para compor o livro que seria seu “projeto de aposentadoria, Leenhardt também divide a exibição em três partes. A primeira delas é dedicada ao que o artista chamou de Casta Selvagem. Ao contrário do que uma primeira lida poderia supor, o autor remete a palavra “casta” ao sentido de “aristocracia” e o termo selvagem à sua raiz, “da selva”. Na segunda, sob o título A Indústria do Colono Brasileiro, quase não se vê a presença branca, justificada pelo mordaz comentário do autor: “Quem trabalha no Brasil é o escravo”. Na terceira etapa, A Corte e a Cidade, somos apresentados à convivência entre as tintas variadas que compõem a verdadeira aquarela brasileira.

 

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