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A arte como laboratório da liberdade no 20º festival Sesc_Videobrasil

Mostra em São Paulo reúne obras que propõem novos olhares e saberes sobre questões urgentes

GG ALBUQUERQUE
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GG ALBUQUERQUE
Publicado em 10/10/2017 às 11:16
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Homens enfileirados cobrem o rosto com a camiseta da seleção brasileira de 1970 enquanto, ao fundo, um narrador lê a lista de mortos e desaparecidos políticos do mesmo ano. Desvelando a face oculta de um Brasil e tensionando as disputas de poder da narrativa historiográfica oficial versus o apagamento da memória, o vídeo Morte Súbita, do artista paulistano Jaime Lauriano, é emblemático das questões levantadas na mostra Panoramas do Sul, dentro da 20ª edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, inaugurada esta semana e em cartaz até 14 de janeiro no Sesc Pompeia, em São Paulo.

Composto a partir de seis eixos conceituais – Cosmovisões; Ecologias; Histórias Invisíveis; Reinvenção da Cultura; Políticas de Resistência; e Outros Modernismos – o festival consolida a sua proposta de amplificar a produção do que conceitua como “Sul Global”, fora da hegemonia tradicional das artes. “A emergência de novas narrativas, que reivindicam espaço e lugares de escuta, e o movimento intenso de reconfiguração sociopolítica são características destes tempos, marcados pela iminência da crise em todos os âmbitos”, observa a curadora-geral Solange O. Farkas no catálogo da mostra.

Discutindo uma nova narrativa, Jaime Lauriano, por exemplo, propõe, como aponta o título de sua palestra, pensar “a identidade nacional como apagamento histórico”, fruto de uma articulação de violências concretas ou simbólicas – etnocídio, mestiçagem, uma suposta democracia racial, epistemicídio da cultura etc. “Tanto à direita quanto à esquerda, a história é construída em cima de um epistemicídio. Mesmo a esquerda progressista, buscando a igualdade, ainda faz buscando a mão de obra, e não igualdade na forma de construir saberes”, comenta. E completa fazendo referência ao sociólogo Jessé de Souza: “O problema do Brasil não é o da corrupção, não é o de classes: é um problema da escravidão, porque ela perpassa todas as bandeiras. É patrimonialista, patriarcal, racista e transfóbica”.

Em sintonia com esta “virada” do olhar, o trabalho de Graziela Kunsch é outra referência brilhante. Em vez de mostrar diretamente o ensaio do grupo de maracatu Ilú Obá de Min, o vídeo mostra como os moradores de rua recebem o som dos tambores, dançando e fazendo pose para a câmera.

Na busca de outras representações e de delírios estéticos, Emo de Medeiros borra as fronteiras da “tradição” e “vanguarda” com a videoinstalação Kaleta Kaleta (baseada na tradicional dança infantil das crianças do Benin), notadamente na série Vodunaut. Nesta última, capacetes de motociclistas são cobertos por búzios (que na religião tradicional do Benin simbolizam viagem). Dentro há um monitor com representações do imaginário da ficção científica, em um cruzamento entre mitologia e cultura ocidental em um fluxo afrofuturista.

“Você pode pensar arte conceitual que não seja etnocêntrica?”, questiona Emo. “Para mim, a resposta é sim. Porque eu acho que um dos interesses em usar tradição não é ilustrar o folclore africano que é usualmente desejado pelo mercado da arte – um pouco naïve e blá blá blá, que eu realmente não gosto. É mais para dizer que, usando alguns elementos ancestrais, é permitido descentralizar o foco e a perspectiva e possivelmente, espero, romper com o etnocentrismo”, avalia.

FOLCLORE POP

Em paralelo, a dupla Bárbara Wagner e Benjamin de Burca (residente no Recife) e o vídeo Faz Que Vai trata o embaralhamento entre as esferas do folclore e do pop no movimento de quatro dançarinos, que dançam ao som de frevo, mas misturam passos do Patrimônio Imaterial da Humanidade com o marginalizado bregafunk, reinventando a cultura em seus corpos. “Tradição é conhecimento que é trazido de outro lugar ou outro tempo. Eu e o Benjamin estamos mais interessados no presente. Então a tradição só funciona para nós enquanto uma expressão que é ‘traída’ pelas formas do presente”, diz Bárbara. 

Ela destaca também o trânsito feito pelos quatro bailarinos do vídeo (dois homens, uma mulher trans e uma drag queen). “Eles transitam de uma maneira surpreendente muito livre entre as classes das quais eles fazem parte. As questões de gênero e de raça não são os primeiros assuntos no nosso trabalho, eles estão ao lado. É como se a gente não tivesse como falar desse sujeito sem falar disso. E o frevo vem como uma coisa que une os quatro personagens, uma forma meio comum de se expressar, de construir uma espécie de identidade que é móvel, instável. Por isso que o nome é Faz que Vai, esse movimento que parece que é uma coisa, mas não é. A gente queria falar dessa instabilidade entre estes estados que a gente pensa que são permanentes: a tradição e o pop; o masculino e o feminino; a classe popular e a classe média”, sublinha.

Muito além de uma denúncia, os trabalhos de Jaime Lauriano, Emo de Medeiros, Bárbara Wagner e Benjamin Burca e os demais artistas do festival como um todo são anúncios de possibilidades, a proposição de perspectivas subjetivas de um outro mundo. Revisão histórica e visão do futuro confluem em um só. “Passado, presente e futuro são comungados no mesmo tempo. Na maioria das religiões afro-brasileiras se começa o culto saudando os velhos e as crianças que vão vir. Eu penso a arte desse jeito também”, afirma Jaime. “A minha responsabilidade é com os que já morreram (foram muitos que morreram para eu estar aqui falando) e ela não acaba em mim. É uma abertura de caminho, uma trama para poder trazer outras pessoas. Acho que a arte tem essa vantagem dos outros campos de luta política porque ela cria ficção, imaginação e aponta para um futuro – sem necessariamente ser o elemento construtor desse futuro. É um laboratório da liberdade”.

MEMÓRIAS E MODERNISMOS EM DESTAQUE

Na noite de domingo, o 20º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil anunciou os artistas e obras premiados pelo júri (composto por nove curadores e críticos de todo mundo).

O duo pernambucano Bárbara Wagner e Benjamin e seu vídeo Faz Que Vai foram um dos vencedores do Prêmio de Aquisição Acervo Sesc de Arte, recebendo R$ 25 mil e passando a integrar o acervo do Sesc São Paulo.

Os outros vencedores da categoria foram a portuguesa Felipa César com Transmission From Deliberated Zones (um vídeo poético-fictício sobre a guerra de libertação da Guiné-Bissau) e o vietnamita Quy Minh Truong com Vuon Bau Xanh Toi (que traz os relatos de um velho agricultor sobre a carnificina que testemunhou na guerra cambojana-vietnamita, como uma vala comum de 1km com corpos sendo devorados por bichos do pântano).

Frame do vídeo 'Morte Súbita', de Jaime Lauriano (Brasil) -
Kaleta/Kaleta, video-instalação de Emo de Medeiros (Benin/França) -
Vodunaut Series, de Emo de Medeiros (Benin/França) -
Frame de Faz Que Vai, vídeo de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca (Brasil) -
Frame de Faz Que Vai, vídeo de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca (Brasil) -
Frame do vídeo Transmission From The Liberated Zones, de Filipa Ce?sar (Portugal) -
Pisos, instalação de Engel Leonardo (República Dominicana) -
Ensaio Ilú Obá de Min, vídeo de Graziela Kunsch (Brasil) -
Frame do vídeo Vuon Bau Xanh Tuoi, de Quy Minh Truong (Vietnã) -

O Prêmio O.F.F., de R$ 25 mil, concedido pela fundação Ostrovsky Family Fund (EUA/Israel/ Brasil), foi entregue a Jaime Lauriano (Brasil, São Paulo). Também houve premiação de residências artísticas em uma série de instuições culturais: a paulista Graziela Kunsch (no Ujazdowski Castle Centre for Contemporary Art, na Polônia); o dominicano Engel Leonardo (no Kyoto Art Center, Japão); o duo de artistas e cineastas colombianos La Decanatura (Pro Helvetia, Suíça); o beninense/francês Emo de Medeiros (Vila Sul do Goethe-Institut, Brasil) e a indiana Natasha Mendonça (Wexner Center for the Arts, EUA). O mexicano Andrés Padilla Domene recebeu uma menção honrosa.

Afinado com a curadoria da mostra, percebe-se entre os premiados o interesse com a memória e história e a reinvenção de representações. Outros modernismos. A série Pisos, de Engel Leonardo, por exemplo, revisita o projeto de azulejaria feito por Flávio de Carvalho para o monumento Farol de Colombo, na República Dominicana, que celebraria um espírito de pan-americanismo – e acabou por ser o oposto, rementendo à colonização e evangelização. 

O repórter viajou a convite da organização do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil

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