Exposição

Ramsés Marçal: dor como pêndulo da vida

O artista inaugura a exposição Contrapeso na Galeria Amparo 60

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 02/06/2018 às 4:52
Chico Barros / Divulgação
O artista inaugura a exposição Contrapeso na Galeria Amparo 60 - FOTO: Chico Barros / Divulgação
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Pernambucano residente no triângulo Recife-Sertão-São Paulo e formado, como rito de passagem, pela Florence Academy na Itália e pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo, Ramsés Marçal, artista de poética singular, um dos designers autorais mais respeitados do País, sabe da capilaridade da dor como catalisador da criação. Na exposição ContraPeso, adiada por causa da greve dos caminhoneiros e com abertura hoje, na Galeria Amparo 60, ele metaboliza perdas personalíssimas numa série em que a própria subjetividade, talhada e magnetizante, sintetiza a subjetividade emocional ao redor.

ContraPeso é composta de sete fotos grandes, em preto e branco – todas impressas em papel algodão, sem vidro, o que nos dá a impressão de estar diante de estranhas pinturas hiper-realistas. Mais dois desenhos, uma escultura e quatro vídeos. Narrativamente, Ramsés usa um recurso comum na arte, de Picasso a Wharol, e entre os que os antecedem: imprime espécies de autorretratos em que revela mais que a si próprio. Em sua imagem, carrega seus pares. Nas fotos, personagem de si, Ramsés aparece sob uma máscara de papelão menos impessoal do que parece para tentar dar peso ao intangível. “É sobre os impasses que nos desestruturam”, resume.

Em quase todas as imagens, aparece carregando, ora sobre o pescoço, ora tentando se equilibrar ao avesso, o pêndulo: numa ponta, um grande e sangrento coração bovino; na outra, um pedaço de tijolo arrancado de uma construção demolida. Ambos, cada um em sua matéria, densos de memórias. Destaque na exposição, a escultura ContraPeso é materializada em suporte de madeira, cabos de pesca misturados com couro, coração de couro e tecidos na cor café, costurados com linhas pretas de espessuras variadas. Repositórios de sua própria memória.

A série foi pavimentada, como o artista conta, pela dor e a solidão causadas por uma perda pessoal: a morte de seu pai em 2015. Logo depois, trabalhava no Sertão na série Bursa, obras compostas por bolsas de pedra como uma espécie de reflexão crítica ao consumismo contemporâneo e, num terceiro trabalho, móveis e objetos para a rede Tok & Stok inspirados numa movelaria tradicional sertaneja.

Misturou os elementos de sua mítica emocional com lugares de sua geografia emocional para compor os ensaios fotográficos que nos revelam uma paisagem quase felliniana, quase davidlynchiana, mais onírica que concreta. Como personagem de si, se deixa fotografar sobre palafitas, barracos e pocilgas suspensas nas favelas alagadiças dos mangues recifenses, lugares com os quais ele, velejador urbano, foi construindo intimidades. Imagens que nos capturam pela estranha beleza.

Em um dos vídeos, feito no bairro dos Coelhos, ele está dentro de uma pocilga suspensa em palafita, sentado e vestido com uma máscara de papelão. Tem, sobre o peito, como uma espécie de colar, o tal coração bovino de um lado e uma pedra do outro. Os porcos que estão circulando começam a ficar agitados com a presença do artista.

Os animais são claras referências à humanidade ao redor. Como na assertiva de Nietzsche: “Quando mais me aproximo dos homens, menos humano me sinto”, diz o artista. “Em 2017, morando um tempo no Sertão de Pernambuco, na cidade de Floresta, onde desenvolvia um trabalho, comecei a formatar ContraPeso, em meio à solidão e à embriaguez de um ambiente árido e hostil; foi quando me aprofundei nas leituras e entrelinhas sobre a vida e a dor. ContraPeso começou então a se concretizar e a dialogar com as divergências entre Schopenhauer e Nietzsche acerca da dor e do niilismo”, ele diz.

NIILISMO

Na obra, as noções de potência e impotência de Nietzsche parecem tingir a postura do personagem-autor, autônomo e impotente, diante do próprio destino. De Schopenhauer, o pêndulo-colar evoca a impossibilidade da plenitude do desejo: uma vez realizado, deixa de ser o que pretendia ser e volta a ser um novo desejo a ser realizado.

As obras são acompanhadas de pequenos ensaios do cineasta Hilton Lacerda. O diretor de Tatuagem percebe o encontro das inflexões dos pensadores europeus com a lama tropical das reflexões do artista: “Ramsés trouxe a filosofia alemã para decifrar seu ContraPeso. Tivemos poucas e boas conversas, e achei mais interessante manter-me embriagado que direcionado. Mas estava tudo ali. E me dei conta que faltava uma incômoda melancolia tropical. E foi aí que rapidamente os sururus de Graciliano Ramos saltaram da lama no entorno das palafitas; assim como João Cabral e sua educação. E choveu montes de possibilidades. E haja janelas e portas e vielas”, relata Hilton.

Na série, Ramsés Marçal conta com vários interlocutores-parceiros. A produção executiva tem o incentivo da DJ Lala K, os vídeos foram gravados por Marcelo Lacerda, Chico Barros atuou como fotógrafo e a trilha sonora, original, é de Berna Vieira. Sede da exposição que, depois do Recife vai para São Paulo, a Amparo 60 é a principal galeria de arte contemporânea do Nordeste do Brasil. De alguma forma, o artista é todos eles. 

ContraPeso - Ramsés Marçal. Abertura hoje (2/6), a partir das 18h. Galeria Amparo 60 (Rua Artur Muniz, 82, salas 13 e 14, Boa Viagem, edifício Califórnia. Visitação até 23 de junho.

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