Abelardo da Hora (1924 – 2014) é um dos maiores expoentes das artes plásticas de Pernambuco, mas, ainda assim, será o Estado vizinho da Paraíba que irá abrigar sua obra. A transferência do acervo do escultor foi acertada após um acordo entre o Instituto Abelardo da Hora, mantido por sua família, e o governo paraibano, que se comprometeu criar um espaço exclusivo para receber e expor seu legado. Batizado de Memorial Abelardo da Hora, o equipamento está localizado no bairro de Tambaú, em João Pessoa.
"A família constatou que o espaço do Memorial Abelardo da Hora adequava-se a todas as expectativas desejadas, configurando-se como um espaço de qualidade internacional, à altura do homem, da obra e do legado de Abelardo da Hora”, afirmou a família em carta pública. Segundo o documento, a família aguardava, desde 2014, alguma proposta por parte do Governo de Pernambuco e chegaram a procurar “mais uma vez” seus representantes, antes de firmarem o acordo que passa a vigorar, mas, segundo indicam, não receberam condições nos mesmos termos que as propostas pelo Estado vizinho.
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O Governo de Pernambuco, por meio da Secretaria de Cultura (Secult-PE) e da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), afirma ter enviado uma proposta de parceria, assinada por Manuela Marinho, secretária de Turismo, Esporte e Lazer de Pernambuco (em exercício), Márcia Souto, presidente da Fundarpe, Ricardo Leitão, presidente da Cepe, e Evaldo Costa, secretário de Comunicação Governamental. O documento previa uma catalogação da coleção, doação à Fundarpe sob rígidas condições, definição de um novo local de armazenamento e exposição, sendo o Museu Cais do Sertão uma das opções, relançamento de álbuns de gravuras de Abelardo pela Cepe e um lançamento de livro sobre sua vida e arte pela mesma editora.
Em nota oficial, a Secult-PE e a Fundarpe afirmaram surpresa ao tomar conhecimento de modo casual sobre a transferência do acervo para a Paraíba, alegando ainda nunca ter recebido uma resposta da família sobre sua proposta. “Sempre foi muito claro para o Governo de Pernambuco que o Recife é o melhor lugar para ser mantido o acervo artístico e documental do escultor pernambucano”, diz a nota.
O legado
O artista plástico Paulo Bruscky recorda que as obras do também pernambucano Abelardo Rodrigues tiveram desfecho parecido com o de Abelardo. “A coleção de Rodrigues foi disputada entre Pernambuco e Bahia, mas os soteropolitanos levaram. Lamento muito por saber que outras perdas como essas virão”, afirmou em entrevista ao JC.
Autor do livro Abelardo de Todas as Horas, o primeiro sobre a vida do amigo e artista, Bruscky relatou ter acompanhado toda tentativa de negociação por parte da família e se surpreendeu com “a falta de respeito do Governo do Estado”. “O descaso não vem de agora. A gente perde um artista internacional, com várias obras espalhadas pelo mundo. Abelardo é a história do Recife, de Pernambuco e da resistência. Foi pioneiro em esculturas assimétricas”, relembrou.
O mesmo aconteceu com o acervo do marchand e colecionador pernambucano Marcantônio Vilaça, que não encontrou acolhida em Pernambuco. Para Moacir dos Anjos, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, a repetição da história não deve ser tratada como um caso isolado, mas “como sintoma de uma questão mais ampla e profunda: a incapacidade de gestão estadual sobre a riqueza que os artistas do estado produzem”.
Moacir ressalta que o acervo poderia ser utilizado como objeto de pesquisas pernambucanas, a fim de entender a importância o artista como educador e ativista político, uma vez que “os dois fatores se entrelaçam em suas obras”. “Enquanto a importância da arte não for levada a sério, vamos repetir as mesmas perdas nos próximos anos”, garante o pesquisador. Segundo Moacir, não é só a negociação referente a Abelardo que não caminha. O Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco, em Olinda, e o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, no Recife, responsabilidades do Governo e da Prefeitura do Recife, respectivamente, se encontram em grave situação de conservação.
A professora de Artes Visuais da Universidade Federal de Pernambuco, Bete Gouveia, resgatou a importância de Abelardo na história da arte. Ela lembra que, em 1946, ele fundou a Sociedade da Arte Moderna de Pernambuco (SAMR) e a dirigiu por quase 10 anos. “Ele tinha uma mentalidade diferente e buscava um trabalho mais livre e moderno, com formas mais abstratas e voltadas à problemas sociais”, detalha Bete sobre o pernambucano que, por muito tempo, se opôs à Escola de Belas Artes de Pernambuco, onde estudou.
“A transferência das obras e de uma história rica em posicionamento é a prova da nossa fragilidade”, define. “São poucos artistas pernambucanos reconhecidos e faz-se necessário entender que é muito mais do que estética. É sobre um homem com muita história para contar dentro da trajetória terrena”, conclui.