Trajetória

Sérgio Bello celebra 50 anos de carreira e retoma relação com o Recife

Artista visual pernambucano volta à sua terra após episódio traumático nos anos 1980

Márcio Bastos
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Márcio Bastos
Publicado em 04/09/2019 às 13:56
Bobby Fabisak/JC Imagem
Artista visual pernambucano volta à sua terra após episódio traumático nos anos 1980 - FOTO: Bobby Fabisak/JC Imagem
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Este tem sido um ano de reencontro de Sérgio Bello com o Recife. Desta vez, não só físico, como emocional. O artista visual, que mora há quatro décadas na França, está na capital pernambucana para rever amigos, produzir e, também, reinserir-se no circuito artístico da cidade, após, como ele mesmo afirma, sofrer nos anos 1980 com a intolerância em sua terra natal.  Celebrando 50 anos de carreira – que serão marcados com uma exposição dia 25 deste mês, na galeria La Maison Muller, em Paris – ele conversa sobre sua trajetória e produção nesta quarta-feira (4), das 15h às 18h, no Auditório Evaldo Coutinho, no Centro de Artes e Comunicação (CAC) da UFPE.

A vocação para as artes se manifesto cedo para Sérgio. Aos 17 anos, já fazia sua primeira exposição e chamava a atenção de artistas e intelectuais, como Gilberto Freyre e Marcus Accioly. Deste, recebeu o seguinte comentário: “Ele salva, através de uma força que finda suavizada, um passado que ainda persiste como presente, diante do futuro”. A definição é precisa para começar a compreender um trabalho inquieto e atravessado por questões sociais e humanísticas.

Nesta primeira fase, entre a adolescência e o começo da vida adulta, Sérgio Bello se dedicava com mais ênfase ao desenho, a uma observação atenta do Recife, suas ruas esvaziadas, sua história em transformação em contraposição a um tempo quase suspenso. Em 1978, aos 25 anos, muda-se para Paris para estudar. Ingressa na tradicional Universidade Sorbonne, mas com intenção de voltar ao Brasil.

“Quando voltei ao Brasil, em 1983, após cinco anos na França, com a cabeça totalmente adaptada ao Europa, já casado, foi para não perder os traços, minhas raízes. Propus à Galeria Metropolitana de Arte do Recife (hoje o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães) na época doar 30 litogravuras minhas para o estado de Pernambuco. Entre elas, estava a série erótica. Quando cheguei ao Recife, a exposição foi interditada. O diretor de cultura da cidade do Recife na época, disse que não queria ‘essas surubas de Sérgio Bello no museu’. Foi uma punhalada no meu coração. Eu disse: ‘Nunca mais eu moro nesse lugar”, lembra, ainda com dor.

Sérgio, hoje com 67 anos, conta que essa mágoa o consumiu por muito tempo e que, por isso, acabou se “autoexcluindo” do circuito das artes da cidade, fixando sua produção na Europa. A série erótica, conta, surgiu em um momento de eclosão da epidemia da AIDS, quando o sexo passa a ser estigmatizado e a comunidade LGBT vítima de preconceito mais intenso. Esses trabalhos, portanto, constituíram uma forma de se posicionar contra a intolerância.

Por mais que, desde então, tenha vindo todos os anos ao Recife para visitar família e amigos, e também para produzir (mantém um ateliê no Rosarinho) só voltou a expor em Pernambuco em 2012 – e na vizinha Olinda, onde apresentou as séries Gritos da Terra e Gritos de Eros, esta contento as obras eróticas anteriormente rejeitadas, no Museu de Arte Contemporânea (MAC). Para mostrar que a história estava superada, as litogravuras eróticas foram doadas ao museu.

ENGAJADO

Sérgio Bello tem a fala rápida e é enérgico. Durante a entrevista, ele afirmou que sua cabeça sempre está a mil e as ideias para produção não cessam. O ateliê no Recife é abarrotado de obras nas paredes e empilhadas. Em Paris, conta, seu local de produção tem quase 400 trabalhos.

“Trabalho muito, de manhã, tarde e noite. Podem dizer todo defeito meu, menos que sou preguiçoso (risos). Sou muito ansioso, mas quando trabalho, me acalmo”, confidencia.

Estudioso da história da arte, ele aplica esse conhecimento à construção de um traço próprio. Exemplo disso é a impactante série Remake/Aleijadinho, também intitulada O Grito dos Profetas, inspiradas nas obras do artista barroco Aleijadinho (1730-1814). Nela, os doze profetas pintados por Sérgio, e que juntos formam um monumental painel, são representantes e defensores dos oprimidos.  Seu material poético é diverso, mas, invariavelmente, passa pela observação atenta da sociedade e da condição humana.

A série Gritos da Terra, por exemplo, criada há 15 anos, é mais atual do que nunca. Nela, Sérgio representa o descaso com a natureza e o massacre dos povos originários na Amazônia. A terra que queima em suas pinturas é potencializada com a colagem de elementos vegetais e minerais.

“Meu trabalho é muito engajado contra a destruição da Amazônia, dos povos, contra a falta de liberdade, qualquer que seja, sexual ou política”, enfatiza. “O homem não parou de oprimir, desde a época do Antigo Testamento. Isso é uma coisa que me preocupa muito.”

Esse comprometimento com as causas sociais é refletido ainda na série Grito dos Povos, composta por quadros representando diferentes comunidades que historicamente são perseguidas e oprimidas, como as mulheres, negros e LGBTs. A violência, explica o artista, atravessa sua obra como uma representação do que acontece no entorno, mas também como uma forma de combate, de ação diante da barbárie.

“Todas as raivas, indignações, minhas frustrações de artista oprimido, ao invés de somatizar ou agredir, eu exorcizei no meu trabalho. Minha obra é de resiliência”, reforça.

ÁRVORES GENEALÓGICAS

Atualmente, Sérgio se dedica aos trabalhos intitulados Árvores Genealógicas, que serão apresentados na exposição de Paris. Trata-se de esculturas de madeira que representam árvores cujos galhos sustentam frutos que são, na verdade, sapatos. A inspiração foi uma reflexão de indígenas de que eles seriam os descalços e os homens brancos, os calçados. Com a planta do pé e a palma da mão, esses povos teriam contato físico com a terra, enquanto os brancos teriam perdido essa conexão. A provocação do artista é de que, no ritmo de devastação que a sociedade caminha, no futuro as crianças nasceriam calçadas. Ou seja, nascidas já desconectadas com a natureza.

Se dedicando a essa produção, Sérgio espera, em 2020, apresentar a série dos Profetas no Recife. Sua intenção, é, assim, selar de vez a paz com sua cidade natal, iniciando um novo ciclo.

 

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