Cardápio novo

Nez abriga a vanguarda gastronômica de Bruno Didier

De franca influência espanhola, o chef Bruno Didier faz comida de vanguarda e incrivelmente autoral no Nez de Boa Viagem

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 23/08/2013 às 17:57
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Quando um restaurante que já desfila com a elegância autônoma de um cavalo de raça muda radicalmente seu cardápio, é como se se reinventasse. É mais ou menos isso que o Nez de Boa Viagem faz agora.
Com a presença de Bruno Didier na chefia, a casa troca quase que integralmente os pratos, mobiliza o esforço da equipe a partir do zero e, sim, acerta direto no alvo: mal chega à mesa, a comida do chef provoca, atiça e acaricia os sentidos.
Pernambucano com densa experiência europeia, notadamente com o Ferran Adrià que fez o mundo repensar a gastronomia neste começo de século, Bruno concebe e executa uma comida cosmopolita, cheia de informações, mas, sem contradições, profundamente familiar e sensorial.
Sua comida transita por uma dualidade. Vai estimular intelectualmente quem entende – e gosta de entender de comida. Quem tem deleite no exercício gustativo-mental de decupar pratos percebendo como culturas e técnicas são manipuladas para a arquitetura de formas e sabores. Mas vai extasiar também quem só quer festa para o paladar. Porque, apesar de bem pensada, a comida de Bruno Didier tem uma fruição direta com as emoções que o paladar é capaz, inconscientemente, de acionar.
Vejamos, pois, o que tivemos numa noite degustação: Inspirado francamente na cultura espanhola das tapas, o chef criou uma série de “snacks” para serem provados antes das entradas. São diverte-bocas que, de despretensiosos, não têm nada.
Cenograficamente servidos sobre uma meia lata de queijo, os raviólis líquidos de queijo do reino são criados com a técnica de esferificação (comum na cozinha molecular), durinhas por fora, líquidas por dentro, que explodem, literalmente, na boca. O palato é invadido pela untuosidade familiar desse queijo tão querido pelos pernambucanos, evocação de natais, e logo reanimado com toques herbáceos de manjericão. Inesquecível.
Em seguida, tivemos um “papel de camarão”. O papel de arroz da cozinha japonesa texturizado com pó de camarão seco. Parece comida de tabuleiro de baiana, mas, ao provar, nos vemos em outro território. O de uma Bahia gustativa minimalista, elegante, com uns toques de creme de camarão e pequenos camarões secos fazendo menções ao vatapá. Também inesquecível, vai lindo com uma boa cerveja.
A noite segue e temos o prato batizado de Tomates, Mozzarelas e Contrastes Afins. Espécie de cartão de apresentação do chef, a receita lhe deu o prêmio do prestigioso concurso Madrid Fusion em 2010. Como ele mesmo define, é uma espécie de salada caprese tecnológica, em que os sucos e notas gustativas são potencializados em conteúdos semilíquidos que se desvelam e atacam o palato ao rompermos a camada externa das esferificações. Pura sinestesia.
No programa, há lugar para artigos de menos tecnologia: minibatatas ao dente, recheadas com brandade de bacalhau. Uma tapita tratada com rigor gastronômico. É hora, então, de partir para os principais.
Primeiro, uma garoupa com lambretas, batata em molho verde e creme de castanha-do-Pará. Minuciosamente suculento, o peixe se desfaz em lascas e é protegido por sua pele cuidadosamente pururucada. As notas terrosas da castanha fazem belo contraste com a pujança das vieiras que soltam uma brisa marinha do prato.
Sabor em conexão poética com nossas feijoada, o cochinilho é um leitão pacientemente confitado em sous vide, até a maciez extrema das fibras, delicado como toda carne deferia ser, desfeito e remontado, com pele irrecusavelmente crocante.
Naturalmente, a equipe ainda está sendo treinada para os pratos, que são servidos conforme a demanda do cliente. Mas seria lindo se as receitas pudessem compor, em breve, um menu degustação orquestrado pelo próprio chef (com a correspondência adequada de vinhos). O que, segundo os proprietários, deve acontecer nos próximos meses.
Com Bruno no Nez de Boa Viagem, sem qualquer afetação, é como se a vanguarda gastronômica de Ferran Adriá, suas moléculas e desconstruções, que tanto estranhamento e barulho provocaram, encontrassem uma tradução sóbria, confortável, familiar. Tendo também, a seu favor, boa parte da precisão técnica menos pirotécnica que faz do Norte da Espanha a excelência da gastronomia mundial.
Esse cardápio vanguardista estará disponível apenas na unidade de Boa Viagem do Nez. “O público do restaurante de Casa Forte é muito tradicionalista, tenho clientes que vão toda semana e pedem, rigorosamente, o mesmo prato”, diz o restauranteur Marcelo Valença, indicando que o endereço da Zona Norte deve fortalecer seu caráter de bistrô, com pratos tão tradicionais que poderiam estar num cardápio talhado em pedra sabão.
Houve, na minha mesa, quem, embora em franco gozo gustativo, dissesse que não tivemos comida para o dia a dia. E não é mesmo. Para a rotina, temos nossa já gourmetizada confort food. É mais ou menos como a diferença entre artesanato e arte. O cotidiano é artesanal. Quando transformando em excepcional, temos, ali, arte. Sim, não é menos que arte – contemporânea, sem dúvidas – o que esse chef faz. A gastronomia de Bruno Didier é dualista sem paradoxos: satisfaz corações e mentes.
Ah, sim, os preços: os “snacks” custam de R$ 5,50 a cerca de R$ 20; As entradas, entre R$ 30 e R$ 50. Os principais, entre R$ 50 e R$ 60. Caro? Não se levado em conta o investimento técnico e a qualidade dos ingredientes para se alcançar os resultados – e sobretudo diante da inflação gastronômica que assola a cidade com preparos arrogantes que mal merecem os pratos de cerâmica sobre os quais são servidos. Ainda não provei, mas já está na agenda mental conhecer o rabo de toro. Instituição espanhola, a rabada é desossada pelo chef e servida com uma emulsão cítrica de agrião.
Nez – Rua Amazonas, 40, Boa Viagem. Telefone: Fone: 3441-7873. Jantar de terça a sábado. Almoços às sextas e domingos.

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