Memória pernambucana

As muitas camadas da vida de Dona Fernanda Dias

Matriarca que fundou a Casa dos Frios e ajudou o bolo-de-rolo a se tornar ícone pernambucano tem biografia escrita por Flávia de Gusmão

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 27/12/2017 às 4:03
Arquivo da família Dias / Divulgação
Matriarca que fundou a Casa dos Frios e ajudou o bolo-de-rolo a se tornar ícone pernambucano tem biografia escrita por Flávia de Gusmão - FOTO: Arquivo da família Dias / Divulgação
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Uma das autoridades mundiais em história da alimentação, o sociólogo italiano Mássimo Montanari gosta de lembrar que “uma tradição", no fundo, “não é mais que uma inovação bem sucedida”. A frase é lapidar para o entendimento da trajetória de dona Fernanda Maria Monteiro Dias, a pernambucana que, em parceria com o imigrante português Licínio Dias teria, como fruto de um casamento com 6 filhos, 14 netos, 4 bisnetos, uma instituição que mudaria estruturas fundamentais do que viria a ser considerada a tradição da mesa pernambucana. Há cerca de 60 anos, surgia a Casa dos Frios, loja que, ao passar para sua administração, alguns anos depois, começou também a agir na construção de um aspecto de revelo no conjunto de subjetividades coletivas que, na ausência de termo melhor, podemos classificar de patrimônio imaterial.

Com lançamento (claro) na Casa dos Frios das Graças, a biografia de dona Fernanda Dias pode ser melhor conhecida com o lançamento de Fernanda Dias - Uma vida para construir uma marca.Volume da Coleção Memória, selo da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) sobre personagens da vida cultural pernambucana, o livro é assinado pela jornalista Flávia de Gusmão, editora assistente de Cultura do Jornal do Commercio, escritora e pioneira do exercício da crítica gastronômica no Nordeste.

Em 19 capítulos por 178 páginas, Flávia investiga como foi construída a personalidade da pernambucana de ascendência nobre - neta do mítico Arthur Lundgren, magnata da indústria têxtil nacional, prodigioso pai de 21 filhos de relações diferentes -, que uniria o tino para os negócios e a sofisticação de ascendência materna com a vocação culinária dos Monteiro, sua família paterna. Depois de perder a mãe precocemente para um câncer com apenas quatro anos de idade, a menina foi crescendo para se tornar a matriarca que, sob a contribuição direta dos filhos sob as asas, inventou um novo modelo de consumo gastronômico em Pernambuco.

“A Casa dos Frios abriu fronteiras para que as expressões culinárias das duas pátrias convivessem harmonicamente, travando um diálogo afinado, inaugurando novas fronteiras para o segmento no Recife, granjeando respeito além dos seus limites geográficos. Se o bolo de rolo é o embaixador da gastronomia pernambucana, a Casa dos Frios é, indiscutivelmente, a sua embaixada, trazendo as bandeiras de Brasil e Portugal entrelaçadas”, destaca Flávia de Gusmão. Na loja, produtos europeus e, sobretudo, de Portugal, se igualavam em importância aos insumos regionais antes menos prestigiados. Antes, por exemplo, bolos de origem patriarcal dos antigos engenhos, hoje patrimônios reconhecidos, quase não existiam no varejo. “Tinha  algumas quituteiras nos subúrbios distantes. Só comia esse bolos quem tinha empregados ou uma mãe que os fizesse”, lembra dona Fernanda.

TRADIÇÃO

Responsável por algumas entrevistas de campo para a narrativa da autora Flávia de Gusmão, a jornalista Mariana Mesquita reforça que “pelas mãos de Fernanda Maria Monteiro Dias, nosso sabores tradicionais atingiram uma nova dimensão ao longo das últimas cinco décadas”, transformando o bolo de rolo em símbolo identitário e a Casa dos Frios, em sinônimo de qualidade.

Para tanto, dona Fernanda usava um senso de orgulho pátrio incomum. Driblava até a vigilância do marido para incluir sarapatéis e feijoadas, além dos bolos que se tornariam icônicos, em pé de igualdade comercial com embutidos, mostardas e queijos até ali impronunciáveis pelo público local. Quebrava, assim, a lógica colonizada e simbólica de o produto do colonizador é sempre superior culturalmente ao do colonizado.

Para tanto, a empreendedora tanto buscava receitas entre as damas da sociedade pernambucana de origem nos engenhos, como se valia de diletos colaboradores. Seu braço direito, a funcionária Ana Soares lhe ensinou e ajudou no preparo do bolo de rolo até o fim da vida, aos 92 anos.

Assim, ao trazer, por exemplo, os bolos de rolo, pé-de-moleque e Souza-Leão para as prateleiras, Dona Fernanda não sabia, mas aproximava os pernambucanos de sua própria cultura - empreendeu uma inovação tão bem sucedida, como diria Montanari, que ajudou a fundar uma tradição.

Fernanda Dias, uma vida para construir uma marca (Cepe/R$80). Hoje, a partir das 18h, na Casa dos Frios (Avenida Rui Barbosa, 412, Graças).

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