ESTREIA

Estrelas além do tempo: o racismo por trás da corrida espacial

Filme cotado para o Oscar narra a história de superação de três cientistas negras na Nasa

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 19/01/2017 às 7:00
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Filme cotado para o Oscar narra a história de superação de três cientistas negras na Nasa - FOTO: Divulgação
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Katherine Johnson, fenômeno da matemática, foi responsável pelos cálculos que tornaram possível a primeira incursão dos americanos ao espaço; Mary Jackson, uma engenheira espacial da Nasa no mesmo período. Mais velha e inseparável das duas, Dorothy Vaughn, a mulher que ensinou aos gênios da agência espacial americana a programar seus primeiros, pesados e indecifráveis computadores. O ano era 1961. Nos Estados Unidos em que a cor da pele determinava o bebedouro público a ser usado para matar a sede, elas tinham algo em comum além das inteligências assombrosamente naturais. 

Foram as primeiras cientistas negras da história cujas trajetória para fora da curva, até então ocultas, serão reveladas a partir de hoje com a estreia de Estrelas Além do tempo, o novo arrasa-quarteirão da Fox que, sob a direção de Theodore Melfi e em plena era Viola Davis x Trump, indica como Hollywood está disposta a tirar, de novo, o DNA afro-americano do fundo das gavetas.

As personagens, bastante idosas, estão vivas para se verem representadas por Taraji P. Henson (Katherine), Octavia Spencer (Dorothy) e Janelle Monáe Vaughn (Mary Jackson) – atrizes de magnetismo e musculatura suficientes para dar conta desse drama histórico e, se temos um grande estúdio por trás, suficientemente lacrimoso e comovente para justificar a quantidade de apostas recebidas pelo filme nas bolsas quase oficiais para o Oscar. A virtude da narrativa é o mesmo fator que o fragiliza: temos humanidade o suficiente para perceber como a cisão racial fraturou também a Guerra Fria em que os Estados Unidos tomavam calmantes para dormir,  energéticos para acordar, e ganhar a corrida espacial contra a nião Soviética comunista.

Não faltam os bons clichês narrativos como doses de romance, humor irônico e batalhas verbais de tribunal, ou discussões triviais com estatura de batalha judicial – que fazem Hollywood ser Hollywood. A despeito da turbulenta gravitação social em contrário, aquelas mulheres negras vencem suas biologias sociologizadas, borrando os limites de cor e gênero, para encarnar a primeira geração de cientistas negras da história norte-americana – episódio salvo do silenciamento pelo cinema, graças ao bem documentado livro de Margot Lee Shetterly. Há quase seis décadas, elas colocavam em pauta o empoderamento feminino que oscila entre o mantra e o clichê nas ágoras virtuais do século 21.

Trama tripartite, a narrativa tem o protagonismo mais centrado na figura de Katherine Johnson. A defesa da personagem por Taraji P. Henson é soberbamente humana. Se no começo desconfiamos de que teremos a caricatura da negra vitimizada à espera da abertura da porta da casa-grande, a atriz vai imprimindo camadas em espiral de uma densidade em que (percebemos) ironia, paciência e sarcasmo são armas de uma inteligência emocional fundamental para permitir o gênio borrar as grades impalpáveis do racismo. Janelle Monáe Vaughn faz uma Mary Jackson implacável em fugir do determinismo social sem, contudo, perder o carisma e a deliciosa ironia para ficar presa na superfície da missão. Quando é impedida de ser promovida a engenheira por não ter acesso a uma escola de formação, exclusiva para brancos e homens, ela, voz que fala pela voz de todos, diagnostica: “Toda vez em que estamos próximas a conquistar algo, eles mudam a linha de chegada”. E, recusando o quartinho de empregada, vai ao juiz com um discurso engendrado para o palco que a sociedade é, faz da palavra transformação, e se torna a primeira mulher negra a ser engenheira aeroespacial da Nasa (seu nome, hoje, batiza um prédio da agência). Antes de mudar todos os sistemas de computação da época, a Dorothy de Octavia Spencer é risonha, ardilosa e maternal. Sobram camadas de personalidade nas personagens.

WINNERS

O filme, contudo, começa com uma sequência em que uma pequena Katherine assusta as escolas por onde passou com seu gênio superdotado para a matemática. Se, por um lado, nossas heroínas riscam o retrato oficial ao mostrar ter havido segregação e melanina nos bastidores da corrida espacial americana, a aura de predeterminadas ajuda a reforçar um mito ainda mais aderente na mentalidade do americano médio que acaba de se despedir de seu primeiro presidente negro. Mais que white and colored, aquela, em blues ou frames,  é ainda uma nação de loosers and winners. 

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