Janela de Cinema

Filme Gabriel e a Montanha emociona com história real sobre encontros

Um cuidado quase obsessivo com a reconstrução dos últimos 70 dias de Gabriel Buchmann, jovem encontrado morto no Malawi em 2009, comove e sensibiliza.

JC Online
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Publicado em 06/11/2017 às 10:57
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Um cuidado quase obsessivo com a reconstrução dos últimos 70 dias de Gabriel Buchmann, jovem encontrado morto no Malawi em 2009, comove e sensibiliza. - FOTO: Foto: Divulgação
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Enquanto escalava na África, o economista carioca Gabriel Buchmann trilhou sua própria tragédia. Sem guia, sem equipamento e sem calçado apropriado, o aventureiro de 28 anos deixou a vida em 2009, vítima de hipotermia e do próprio senso de invencibilidade. É o que mostra Gabriel e a Montanha, o segundo longa-metragem do cineasta Fellipe Barbosa, amigo pessoal do personagem-título. Mas essa não é só mais uma história de aventura com paisagens deslumbrantes envolvendo um jovem branco de classe média alta. É uma história real sobre encontros e contradições. Sobre a complexidade de um ser humano que pode cair na besteira de não enxergar além do próprio ego ao mesmo tempo em que sonha com um mundo menos desigual. Premiado no Festival de Cannes deste ano, o filme foi exibido no Cinema São Luiz, na noite do último sábado (4), dentro da programação especial do X Janela Internacional de Cinema do Recife.

Antes que as luzes se apagassem e as cortinas abrissem espaço para a projeção, o público recifense foi contemplado com a presença do cineasta, do diretor de fotografia Pedro Sotero e dos atores João Pedro Zappa (Boa Sorte), que vive Gabriel, e Caroline Abras, intérprete de Cris, a namorada do protagonista. Por volta das 20h, eles se apresentaram brevemente e desejaram uma boa sessão. Foi quando parte do público tomou conhecimento da antiga ligação entre Fellipe e Gabriel. "Eu tinha sete anos quando o conheci. Estudamos juntos até os 17 num dos colégios mais tradicionais do Rio, depois cursamos juntos economia na PUC. Em 2000, eu fui estudar cinema nos Estados Unidos e nós perdemos contato”, contou, destacando que “fazer esse filme foi uma maneira de tentar reencontrá-lo". Quando o escuro tomou conta da sala, a tela foi invadida por um exuberante plano sequência do mítico morro Mulanje - um dos mais altos do Malawi -, onde dois agricultores encontram o corpo de Gabriel, em posição quase fetal e sob a camuflagem da natureza. Ele estava há um ano viajando o mundo, colhendo dados para sua pesquisa sobre políticas públicas para países em desenvolvimento. E Malawi seria seu último destino antes de entrar numa universidade americana de prestígio.

O mais incrível da obra é que esses personagens agricultores são os mesmos homens que localizaram o corpo de Gabriel há quase uma década. Aliás, todo o elenco fez parte da vida do jovem e interpreta a si próprio, salvo o casal protagonista e uma montanhista que aparece no último dos quatro capítulos da narrativa - que são separados pelos países africanos percorridos pelo economista: Quênia, Tanzânia, Zâmbia e Malawi, respectivamente. “A gente achava que ia moldar esses personagens por sermos os únicos atores profissionais, mas eles interviam. Diziam ‘ah, a Cris não responderia desse jeito’. E aí a gente ressignificava uma cena inteira. Isso foi muito rico”, pontuou a atriz. Isso fez com que a obra, apesar de ficcional, dialogasse com outros tipos de linguagens e transitasse pelo documental. Inclusive, áudios em off colhidos de depoimentos desses personagens são incluídos em diversas cenas. Roupas e objetos pessoais de Gabriel também foram incorporados à narrativa. Até mesmo a câmera usada pelo jovem - que se nega ser turista até o último segundo, apesar de fazer tantos registros de viagem.

É esse cuidado quase obsessivo com a reconstrução dos 70 dias finais de Gabriel o responsável por dar uma dimensão imersiva à obra. Sensível e comovente. Se o filme tivesse sido gravado sob outra ótica, seguindo um roteiro fechado, possivelmente não seria tão sincero e honesto. Muito menos se tivesse sido dirigido por outro alguém que não conhecesse o jovem idealista. Para o ator, a questão de tentar chegar na verdade do personagem era uma preocupação. “Eu pensava: será que os amigos, a família e o próprio Fellipe vão me reconhecer nele?”, indagou, comentando que procurou buscar histórias e conhecer amigos de Gabriel, de vários ciclos, para tentar compreendê-lo. “Depois que eu entendi o que ele foi para a família e amigos, foi importante compreender o que ele era para os personagens africanos. Afinal, ele estava há dez meses longe de casa, já poderia ter se reconstruído, se recriado como pessoa”, pontou João, revelando que, durante a pesquisa na África, o homem masai – grupo étnico de natureza seminômade localizado no Quênia e no norte da Tanzânia - acreditou ter passado três semanas com Gabriel, quando na verdade foram apenas três dias. Tempo suficiente para que ele fosse chamado carinhosamente de mzungu (homem branco) pelas crianças do grupo, ganhasse roupas coloridas, uma espada de aço, um cajado, uma sandália feita de pneu e até mesmo um nome de batismo: Lemayan, que significa “o mais abençoado”. O que só reitera como tudo foi muito breve, porém intenso.

Bastidores

Após a exibição do filme, o realizador voltou à frente do Cinema São Luiz junto à sua equipe para um debate com os espectadores, mediado pelo idealizador e curador do evento, Kleber Mendonça Filho. Questionado sobre como encontrou os personagens da vida real de Gabriel, Fellipe afirmou que tudo partiu do diário de viagem dele, assim como de fotos e e-mails que o jovem mandava para Cris, para a mãe e a irmã. “Foram duas viagens de pesquisa, em 2011 e em 2015. Fui encontrando uma a uma as pessoas que ele tinha conhecido. Tinha a sensação de que estava fazendo um casting”, brinca, ressaltando que esses encontros eram descritos pelo amigo de infância com muita vivacidade. “Foi aí que pude constatar como ele tinha vontade de compartilhar essas experiências”. Com relação aos imprevistos que encontrou no meio do caminho, principalmente por estar trabalhando com um elenco não-profissional, o cineasta afirmou que teve que cortar muita cena, sobretudo do Lewis Gadson, o guia que o jovem dispensou antes de subir sozinho ao topo do Mulanje. “Quando refizemos a cena de Gabriel indo embora, Lewis não queria deixá-lo partir. Era como se ele tivesse de algum modo tentando reescrever a história ali. Foi muito angustiante e emocionante”, contou.

Durante as gravações, inclusive, a irmã do jovem, Nina Buchmann, subiu o Mulanje com a equipe. “Ela olhava para o João e parecia que estava vendo o irmão. A gente não pode nem descrever quão forte e pura foi essa experiência”, declarou Fellipe, comentando que a irmã e a mãe do rapaz, Fátima, estiveram na sessão exibida em Cannes. “Elas reagiram muito bem. E continuam descobrindo o filme como uma maneira de participar dos últimos dias de Gabriel, de concluir esse luto”. O cineasta acredita que o fato de ter passado a imagem do amigo como um ser humano qualquer, com defeitos e contradições, tem ajudado a família a passar por esse processo de superação. “Deve ser muito difícil para uma mãe entregar um santo. Aliás, deve ser muito difícil para uma mãe entregar um filho. Mas foi bom para Fátima ver que não foi só uma injustiça cósmica, sabe? O que levou Gabriel à morte foram suas próprias escolhas. Hoje, a sinto mais leve”, afirmou.

Parte das contradições do protagonista envolviam sua namorada, Cris. Quando ela encontra Gabriel já na Tanzânia, depois de cerca de três meses distante, traz um contexto do passado que ainda não tinha vindo à tona sobre o rapaz. Seu posicionamento machista e conservador diante de algumas situações não exploradas enquanto ele estava desbravava a cultura de um novo continente. Afinal, não tem como se conhecer bem uma pessoa sem tempo de convívio ou repertório. Apesar das brigas e das diferenças, eles estavam apaixonados. Para algumas pessoas que os conheceram na época, eles ainda estariam juntos se não fosse pelo ocorrido. Um dos pontos mais comoventes do filme fica por conta da cena de despedida do casal. Cris parecia saber que não o veria mais. Assim como Gabriel parecia sentir que o fim estava se aproximando, sempre agindo com muita pressa e com uma negligente fome de liberdade. Ovacionada, a sessão terminou com o depoimento de uma espectadora que, visivelmente emocionada, disse ter conhecido Gabriel em Londres, onde ele deu início à sua derradeira viagem.

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